Marcus Garvey
Caro leitor, antes de tudo, peço perdão ao povo angolano pelo crime cometido e cumprido nos vários estabelecimentos prisionais de Angola.
Sou Jesuino Futila, mais conhecido por Marcus Garvey, nascido em Luanda, aos 13 de Dezembro de 1996, no município do kilamba kiaxi, bairro Golf1.
Nasci e cresci no município do kilamba-kiaxi, onde acabei por praticar o crime de homicídio por legítima defesa, que me levou a cumprir cinco penosos anos nas cadeias de Angola.
Nestas páginas do Jornal O Crime, vou desabar, vou abrir o meu coração e contar um pouco da minha história, um pouco da minha experiência nas cadeias de Angola. Errar é humano, e todo ser humano merece uma segunda oportunidade.
Com 17 anos de idade, fui parar na cadeia pelo crime de homicídio que não havia intenção de o praticar. Este triste acontecimento ocorreu no dia 6 de Agosto de 2014, por volta das 9 horas, quando decidi ausentar-me de casa para visitar alguns amigos.
Dia 6 de Agosto de 2014 foi um domingo e neste dia, minha mãe pressionava-me tanto para que fosse com ela à igreja. Acho que ela estava a pressentir que algo de errado podia acontecer.
Mas não fui, pelo contrário, quando eram provavelmente 9 horas, da manhã, a minha mãe ausentou-se de casa, despediu-me que iria ter com uma amiga e que não poderia demorar e pediu-me, por conseguinte, para que não saísse de casa, pois, quando regressasse podíamos ir à igreja juntos.
Logo que a minha mãe se ausentou eu esperei uns 5 minutos e decidi sair também. Era para fugir da minha mãe porque eu não queria ir à igreja. Deixei a roupa na máquina a girar e pedi à minha irmã mais nova para controlar a roupa que estava na máquina.
Orientei-a para, depois, depois estender a roupa e disse-lhe também que não eu demoraria, mas na verdade demorei quase 5 anos e pior, matei alguém.
Ela retrucou: “a mamã não disse para você não sair”? Eu respondi “Não vou demorar”, e fui. Desgraça começou desde o momento que desobedeci a minha mãe.
A caminho para a rua, onde se concentravam os meus amigos, algo me dizia para voltar, mas na verdade não dei ouvidos àquela voz interna e prossegui a caminhada.
A leitura do Jornal O Crime devia ser obrigatória em todas as cadeias do país, pois, é de extrema utilidade, eles contam as histórias do crime, consequências para quem se envolve no crime e conselhos.
Um indivíduo que não consegue perdoar, não deve esquecer que esta destruir a porta que um dia vai precisar passar por ela.
Porque todos nós estamos sujeitos a cometer uma atrocidade, mas devemos reconhecer que não devemos optar por esta via do crime.
Não entendi, no momento, aquela sensação, não dei ouvidos nem ao meu instinto, que hoje se pudesse entender aquela voz interna que me dizia para voltar a casa, mas teimosamente decidi ir adiante e fui numa rua ver alguns amigos, mas a rua estava isolada e não encontrei nenhum deles, o que achei muito estranho, pois, aquela rua nunca ficava isolada.
Desta feita, decidi regressar à casa, mas já era tarde demais… É que, no meu regresso fui interpelado por cinco jovens do mesmo bairro onde eu residia, estavam todos aparentemente drogados de liamba, uma vez que uns ainda fumavam.
Um deles disse-me que faltei ao respeito em um dos seus amigos. Perguntei qual dos amigos, como resposta deu-me um soco na cara assim mesmo do nada. No mesmo instante um deles retirou uma faca da cintura para me desferir um golpe.
Logo dei conta que era algo planeado como estávamos diante de uma bancada, onde tinha uma senhora a vender bombó com gigunba, no tabuleiro da mesma tinha uma faca com que ela trabalhava, logo que vi o jovem a puxar a faca, a primeira coisa que pensei foi em me defender.
Esforcei a defender-me e peguei na faca da senhora que ficou assustada e gelada a assistir àquele trágico cenário. Foi tudo muito rápido, desferi um golpe na região da barriga do jovem que me deu o soco, infelizmente teve morte imediata. Lamentarei pelo resto da minha vida.
Triste situação que aconteceu comigo, até hoje me pergunto porque tinha de ser assim? Arrependo-me de não ter ouvido a minha mãe, minha irmã e o meu instinto.
Depois de desferi o golpe com a faca ao jovem, coloquei-me em fuga, corri como nunca ainda com a faca às mãos e o bairro que estava isolado em poucos segundos ficou cheio e todos me davam corrida para fazerem justiça pelas próprias mãos, mas Deus parece que tinha plano comigo, pretendia dar-me uma lição, pois, não sei como consegui escapar e estar aqui hoje a contar essa triste história.
Para escapar do linchamento popular, entrei numa residência, pulei o muro da casa do vizinho que dava acesso a outro bairro, daí consegui escapar ileso. Quando cheguei ao Golf2, estava sem dinheiro para seguir a fuga. Logo vi um jovem conhecido do bairro que era também achegado a mim, logo que me viu assustou e disse-me “ainda estas aqui”?! O jovem que você picou-lhe a faca morreu”.
Sinceramente não queria acreditar, porque eu não tinha certeza da morte do mesmo, porque logo que desferi o golpe puxei a faca e corri, não tive tempo de ver se estava morto ou vivo, nem vi ele cair por isso não queria acreditar na morte dele.
Pedi-lhe 200 kwanzas, e foi com este valor que consegui apanhar um táxi do Calemba 2 até à residência da minha tia (irmã da mãe).
E logo que cheguei no bairro da irmã da minha mãe deitei a faca numa lixeira e caminhei até à casa da minha tia, que logo que me viu começou a chorar e pediu-me para não sair de casa. Logo veio o marido dela que é agente policial e pediu-me que lhe contasse o sucedido e disse-me para ficar calmo e que eu devia se entregar às autoridades e respondi afirmativamente.
Não demorou muito o meu tio ligou a um comandante que, de imediato, disponibilizou uma patrulha, o comandante veio ter comigo e disse-me para não se preocupar que tudo iria se resolver.
Fui posto na patrulha, a minha tia a chorar não acreditava no que estava acontecer assim como eu não estava a compreender. Destruímos nossas vidas em fracções de segundos por más opções.
Fui levado à Esquadra do Calemba 2, onde encontrei uns agentes já a comentarem sobre o meu caso. Nunca fui tão torturado na minha vida como naquele dia. Depois me transferiram para Esquadra dos Correios, onde voltei a ser torturado, que até parecia ser uma norma.
Posteriormente fui evacuado para o Comando do Projecto Nova Vida, onde fiquei 12 dias na cela e só no 13.º, é que, fui ouvido pela Procuradora que me pediu para contar como tudo aconteceu. Fi-lo e depois me disse que devia ser transferido para o julgado de menor, mas nunca aconteceu, ao contrário disso, fui evacuado para Comarca de Viana.
Na Comarca de Viana, vi pela primeira vez o inferno na terra. Era muita gente num espaço reduzido. Pensei que estava em outro mundo, pese embora a cadeia seja de facto “outro mundo”.
Fiquei na cadeia de Viana 7 meses e fui evacuado para cadeia de Calomboloca, onde cumpri a maior parte da minha pena. Fui parar na cadeia de Calomboloca porque aconteceu uma briga na cadeia de Viana onde decidiram evacuar quase todos os presos para diversas cadeias porque também estava claramente sobrelotada.
Os familiares do malogrado tentaram destruir a casa dos meus pais
Enquanto estava preso, os familiares do malogrado, revoltados juntaram-se e tentaram destruir a casa dos meus pais, das minhas tias. Graças aos vizinhos, que conheciam, impediram e a polícia que chegou a tempo de evitar o pior.
Ainda assim, houve arremessos de pedras no teto de casa e no portão, invadiram o quintal levaram tudo que havia lá e pela intervenção dos vizinhos não conseguiram entrar no interior da casa, porque os meus familiares já se haviam apercebido cedo que eu havia praticado o crime e também fugiram e fecharam a casa.
Por muito tempo, os meus familiares ficaram fora de casa, os meus irmãos deixaram de estudar, minha mãe deixou de trabalhar e meu pai quase perdeu o emprego.
Ao aperceber-me que minha família passava, senti-me pior e compreendi que a cadeia não era a cruz mais pesada que tinha a carregar.
Se por minha culpa acontecesse alguma coisa com alguém da minha família, acredito que hoje não estaria aqui a dar este testemunho porque, de certeza, cometeria suicídio. Na cadeia pensava como fui capaz de destruir a alegria da minha família.
Todos os dias da minha vida. Lembro-me como se fosse hoje o acto praticado, que de alguma forma, acabou por ressuscitar a minha mente para acreditar que na vida todos deviam ter o direito de uma segunda oportunidade, assim como tenho hoje, o jovem que infelizmente causei a sua morte também devia ter essa mesma oportunidade.
É importante dizer, aqui, que as famílias de quem comete o crime não são culpadas, não merecem sofrer ou serem agredidas pelo erro de um parente, uma vez que nunca são elas que cometem e nem incentivam, pelo contrário, até muitas vezes, tentam evitar como foi o caso da minha mãe.
Minha mãe ‘esteve presa’ comigo
Quando fui evacuado para Calomboloca, minha família não foi avisada. Sem saberem do meu paradeiro ficaram a minha procura durante uma semana nas várias cadeias do país, até que conseguiram encontrar-me em Calomboloca. Os responsáveis dos serviços prisionais devem ser mais responsáveis quanto a isso.
Quando a minha mãe me visitou pela primeira vez na cadeia de Calomboloca não conseguia lhe reconhecer, ela estava muito magra, parece que tinha perdido 40 quilos. Naquele dia me apercebi que minha mãe estava presa comigo e estava sofrer comigo.
Ao vê-la comecei a chorar e pedir desculpas pelo crime que cometi e por não lhe ter dado ouvidos. Pela primeira vez, vi minha mãe a chorar, ela disse-me que perdoava e que eu devia ser forte e mais do que ser forte lutar para sair da cadeia com vida.
Neste dia nem consegui dizê-la que estava doente, pois, a água e a comida me fizeram muito mal. O meu corpo estava cheio de infecção, era alergia muito forte em todo o corpo. Sou alérgico a peixe seco e na cadeia de Calomboloca estavam já há uma semana a cozinhar peixe seco e eu não tinha opção se não comer para não morrer a fome.
Mas depois a minha doença agravou-se, pelo que dei o número dela em um visitante que veio ver um preso, e o visitante ligou para ela e, no outro dia, ela veio com os remédios e com o advogado que eles haviam contratado para me defender.
Dias depois minha doença agravou e não tive alternativa se não pedir alguém para ligar a minha mãe outra vez e dar-lhe a conhecer sobre o meu estado de saúde. Dia seguinte lá estava ela com vários medicamentos que me salvou a vida, pois, pensei que iria morrer.
Depois de 8 meses preso me foi dada a primeira cópia de acusação. Comecei a responder no tribunal do Kilamba kiaxi, em Março de 2015, isto é, um ano depois do crime.
No tribunal é fundamental manter a calma e ser respeitoso.
Naquele dia o julgamento começou às 9h e terminou às 15h.
Pediram para, na próxima audiência, trazer a senhora que testemunhou tudo, aquela a que me referi, inicialmente, que vendia bombó com ginguba, a dona da faca.
Infelizmente não foi identificada porque desde que aconteceu o crime ela ficou traumatizada, sentiu-se culpada por ter deixado a faca na bancada, mudou de bairro e não mais voltou a ser vista.
Fui condenado a 5 anos de prisão, no dia 18 de Abril de 2015, na sentença o juiz disse que me condenava a 5 anos de prisão por ser menor de idade, ser réu primário e ter bom comportamento nos estabelecimentos prisionais por onde passei.
Depois de ler a sentença, aconselhou-me ”você foi condenado pela prática deste crime não porque tencionavas praticá-lo, creio, e como ficou patente neste tribunal, que é um crime em legítima defesa, mas esta condenação de 5 anos é para ir à cadeia reflectir para depois de cumpri a pena que te foi dada, procurar fazeres qualquer coisa de bom, como voltar a estudar para seres alguém na sociedade. E aconselhar aos demais que o crime destrói a todos”, depois mandou-me recolher a cela.
Cumpri toda pena na terrível cadeia de Calomboloca, terrível porque se existe inferno em Angola é bem possível que seja lá. Quando completei 3 anos da minha pena, minha família começou a resolver o processo de liberdade condicional, que é muito demoroso por capricho dos funcionários e responsáveis dos serviços prisionais, colocaram tanto impasse a partir da cadeia como levar o processo para o tribunal e assinatura do director foi uma eternidade que de tanta burocracia só fui solto depois de cumprir 4 anos, isto em 2018.
Convicto que teria uma missão por crime, depois desta triste experiência, estou aqui hoje na perspectiva de aconselhar a todos que possam ler este artigo para que nunca cometam um crime que os possa leva-lo à prisão, prisão é simplesmente um inferno.
Desde já, agradeço ao Jornal O Crime pela oportunidade que me concedeu, e espero que tudo corra bem e que este meu exemplo de vida seja uma forma de reconstruir vidas destruídas pelo mundo do crime.
O que me motivou a escrever o que passei dentro da cadeia é por não gostar de injustiça, exploração, desrespeito, violação dos direitos humanos.
Estive na cadeia com ex-militares que sobreviveram na guerra e diziam que a cadeia é mais perigosa que a guerra porque te mata psicologicamente e acaba depois com o físico.
Na cadeia é difícil não chorar, mesmo quando se é o mais forte espiritual, homens valentes na cadeia perdem coragem de viver, reclusão em 4 paredes é um inferno. Na calada da noite e na hora matinal o pensamento invade a mente dos reclusos e com ela vem a ansiedade de estar em liberdade, com os familiares e amigos. Só conhece o valor da liberdade aquele que uma vez perdeu a sua liberdade. Descrever a sobrevivência na cadeia é triste e falar é doloroso é uma experiência muito complexa.
Se soubesse antes de cometer que passaria por aquela situação na cadeia não cometeria nenhum delito, por isso me arrependo de ter cometido e espero que ninguém mais passe por esta experiência.
Falar do sofrimento que vivemos é uma experiência dura e se não for para despertar e motivar outras pessoas não desistirem de seus sonhos e dizer que ainda é possível vencer os desafios que a vida nos tem dado não adianta contar.
Só conta melhor o sofrimento na cadeia aquele que um dia esteve num presídio por muito tempo e sentiu na pele a dor do sofrimento ao ponto de pensar em tirar a própria vida.
Estava abatido, fraco, derrotado pelo sofrimento na cadeia mais não estava destruído no fundo do meu âmago. Nós sentimos a dor do sofrimento por sermos humanos e porque ainda havia uma esperança que me dizia que tudo poderia passar e deveria recomeçar a vida. Uns precisam assumir suas perdas e outros precisam recolher os pedaços que sobraram.
Homens carcerários desafiam o sofrimento como no meu caso. Para ser exemplo de superação, porque enfrentaram sua própria ruína e suportaram a dor da rejeição e da discriminação social.
Porque você pode esquecer milhares de sofrimentos da vida, mais o sentimento de rejeição e da dor que passaste numa prisão nunca será esquecido.
Preferi viver acreditando que era um pesadelo que estava vivendo e não uma realidade nua e crua. Acreditar na realidade era das mais duras dores que possas sentir.
Ganhei o gosto pela leitura na cadeia
Sempre me esforcei em sair da cadeia com vida, mas perdi muito tempo que nunca conseguirei recuperar. Apesar de tão má, mas na cadeia consegui tirar algo de positivo que é a leitura.
A prendi a gostar de ler, hoje posso dizer sem medo de errar que se não fosse preso continuaria ignorante quanto ao valor da leitura que me deu consolo e esperança de viver.
Foi por meio da leitura que tive conhecimento sobre a existência do Jornal O Crime e do Mariano Brás, pois, graças as pessoas que tiveram possibilidade facilitaram a entrada deste jornal na cadeia que comecei a devorá-lo literalmente.
Ainda preso disse para mim mesmo que, quando saísse da daqui, tinha que conhecer pessoalmente o senhor Mariano Brás. Admirei a sua coragem de escrever sobre à criminalidade no país. Não sabia que existia em Angola alguém como ele. Quando saí da cadeia realizei um dos meus sonhos e, para o meu espanto, ele deu-me uma oportunidade para contar a minha experiência e aconselhar as outras pessoas a não se envolverem no mundo do crime.
A leitura do Jornal O Crime devia ser obrigatória em todas as cadeias do país, pois, é de extrema utilidade, eles contam as histórias do crime, consequências para quem se envolve no crime e conselhos.
Um indivíduo que não consegue perdoar, não deve esquecer que esta destruir a porta que um dia vai precisar passar por ela.
Porque todos nós estamos sujeitos a cometer uma atrocidade, mas devemos reconhecer que não devemos optar por esta via do crime.
Por isso devo advertir a todos os leitores que antes de tomar uma atitude espera e pensa muito porque com a cabeça quente não se resolve problemas nenhum. Devemos aprender com erros de outras pessoas e tirar lição nelas e não errar para aprender com teu próprio erro, como aconteceu comigo.