Assim vai a nossa justiça: MAGISTRADOS ANDAM DE ‘KUPAPATAS’ PARA CONCLUÍREM PROCESSOS

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Numa entrevista exclusiva ao jornal O Crime, o juiz de Direito e assessor para Comunicação Institucional e Imprensa do Conselho Superior da Magistratura Judicial e do Tribunal Supremo, Pedro Chilicuessue, revelou inúmeras vicissitudes vividas pelos administradores da justiça por excelência, os juízes, de deixar boquiabertos, com destaque ao facto de alguns, sobretudo os que labutam nas demais províncias do país, terem de se locomover em camiões e triciclos, vulgos “Kupapatas”, para cumprirem a missão.

Por: Felicidade Kauanda

O Crime —Tomámos conhecimento que muitos juízes e oficiais de diligências usam de meios próprios para a realização da tarefa. O que nos pode dizer?

Pedro Chilicuessue  — Primeiro, queremos agradecer, em nome do Conselho da Magistratura Judicial e do Tribunal Supremo, os quais representamos nesta assessoria de comunicação institucional e imprensa, por esta oportunidade, por ser a nossa primeira interacção com um órgão de comunicação social.

Sim, é uma realidade que os oficias de justiça e os próprios magistrados usam meios próprios para trabalhar. É resultado de toda uma conjuntura que o país vive, julgo ser, também, do conhecimento da senhora jornalista. Mas devo dizer que do diagnóstico feito da situação dos tribunais, depois que entrou em funções o actual presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial, Dr. Joel Leonardo, elucidou-nos que o quadro, de facto, não é bom, pois os tribunais, enquanto infra-estruturas, o quadro dos recursos humanos, as condições materiais e o equipamento técnico ou informático à disposição dos tribunais não estão conforme os desafios que hoje os tribunais têm, pelo que urge a alteração deste quadro.

Daí que se elaborou um plano estratégico de desenvolvimento dos tribunais de jurisdição comum, isto é, os que têm, no topo, o Tribunal Supremo, na posição intermédia, os Tribunais da Relação e, na base, os Tribunais de Comarca.

O Crime — Corresponde à verdade a informação, segundo a qual alguns magistrados andam de camiões e “kupapatas”, com maior incidência no interior do país, para trabalhar?

Pedro Chilicuessue — Todos nós sabemos que é uma realidade de vários juízes de primeira instância hoje. Gostaria de desafiar a senhora jornalista a fazer um bom trabalho no interior do país, para ver a realidade dos juízes. Entretanto, posso dizer- lhe que não precisa ir ao interior, mesmo em Luanda há isso, só que em Luanda tudo se confunde… mas há muitos problemas sociais que os magistrados enfrentam.

O Crime — As dificuldades que os juízes de primeira instância passam são as mesmas que as dos juízes conselheiros do Tribunal Supremo?

Pedro Chilicuessue — Vamos buscar o exemplo do corpo humano… o corpo humano sem os pés fica de pé? Sem a cabeça, vê ou pensa? Pois é, um complemento, então, os tribunais da Comarca são os pés, a estrutura, a base ou o alicerce do sistema judiciário. Qual é o lado da casa que deve estar muito bem apetrechada para não desabar? É o alicerce! Aqui a nossa base são os tribunais de Comarca. Se os Tribunais de Comarca estiverem mal, não há Tribunal da Relação nenhum que vai brilhar, muito menos o Supremo.

Portanto, deve-se olhar para os Tribunais de Comarca, para os magistrados que estão adstritos a estes tribunais, os chamados juízes de primeira instância, que são aqueles que, na linguagem militar, podemos chamar de “choques”, assim como os demais funcionários, porque um juiz, sozinho, não faz nada, precisa de um bom oficial de justiça, motivado, porque, o facto de ele ser oficial de diligências, não o afasta de ser pai, marido, namorado e de ser filho. Ele, na sua dignidade, tem que estar confortável, para atender as suas necessidades, enquanto pessoa humana, enquanto chefe de família ou candidato a outros patamares sociais, o que, também, vai permitir a retenção dos quadros.

Se a tendência for reconfortar sempre o topo, isso estimula a corrida para aquela posição, pois é ali onde as pessoas vão buscar a resolução dos seus problemas sociais. São vários problemas na base que, provavelmente, as pessoas não estão interessadas a dar resposta em tempo útil, e isso faz com que ninguém mais queira ficar na base e, quando isso acontece, o resultado que esperamos é colapsar o sistema.

O Crime — Quais são as regalias dos juízes do Tribunal Supremo?

Pedro Chilicuessue — Não me posso pronunciar sobre isso, dado que não as conheço e não gostava de me meter em seara alheia. O que posso dizer é que, grosso modo, isso consta do plano estratégico do venerando juiz conselheiro presidente, pois, provou que a situação social dos magistrados, no país, não está boa. Por isso é que, volta e meia, ouve-se vários comentários por ali, que os juízes fizeram e deixaram de fazer, que os procuradores fizeram deixaram de fazer.

Portanto, o social desta classe não está boa e inspira algum cuidado e é este o trabalho que se está a fazer, para que se inverta o quadro, tanto no domínio das infra-estruturas, já que grande parte delas anda degradada, dos recursos humanos, que escasseiam cada vez mais, do equipamento técnico e informático, que é necessário para modernização que temos em mãos que, a cada dia, nos desafia e quanto àquilo que tem a ver com a pessoa, a remuneração, para além das outras condições sociais ali congregadas, porque queremos ultrapassar outras conversas que ouvimos por ali…

O Crime — Os comentários de que os magistrados estão a fazer negociatas correspondem à verdade?

Pedro Chilicuessue — É uma conversa quase comum, que ninguém assume, mas, provavelmente, acontece, se partirmos do pensamento filosófico que “do nada, nada vem”. Então, há esta preocupação, por parte do Conselho Superior da Magistratura, para que, junto de quem tem a responsabilidade de prover os recursos necessários para os tribunais, possam desempenhar bem a sua tarefa, sintam-se tocados, sensibilizados, atendam e deem aquilo que é de direito para a classe judiciária, que precisa e clama por um novo alento.

O Crime — Ajude-nos a entender o que a lei diz sobre a independência financeira dos tribunais.

Pedro Chilicuessue — É uma matéria de dignidade constitucional, a autonomia administrativa financeira e patrimonial, resulta do disposto no artigo 178.º da Constituição da República de Angola, “os tribunais gozam de autonomia administrativa e financeira, devendo a lei definir os mecanismos de comparticipação do poder judicial, no processo de elaboração do seu orçamento”. Porém, na prática, dependem, grandemente, do Executivo, designadamente do Ministério das Finanças.

O Crime — Que apelo deixa, aos de direito, para acautelar o quadro precário que acabamos de reportar?

Pedro Chilicuessue — O nosso primeiro apelo é encorajar a nossa super estrutura da gestão e disciplina dos magistrados, estamos a falar da Direcção dos Vogais do Conselho Superior da Magistratura Judicial, no sentido de que todos nós devemos ajudá-los a concretizar aquilo que está contemplado no Plano Estratégico de Desenvolvimento dos Tribunais de Jurisdição Comum, que é um plano abrangente, que olha para as infra-estruturas, para os homens, para os utentes dos serviços dos tribunais.

Segundo, que a classe política dê o seu apoio no limite das suas atribuições, para que, na verdade, aquilo que é acção política não caia em banca rota, porque não haverá pragmática entre o que se fala e o que se faz, ou o que se vive na prática. Então, hoje o exercício da actividade política já recomenda a ética, e a ética nos interpela para que todos façamos bem aquilo que temos em mãos como responsabilidade… pois é assim que deve funcionar aquele tribunal que falta técnicos de justiça e infra-estruturas para albergar os serviços, que falta magistrados comprometidos e animados para a missão… aqueles que têm a responsabilidade política devem fazer bem o seu trabalho, para que esse quadro altere o quanto antes.

É este o desejo de todos nós que estamos nisso imbuídos, para que possamos dar o nosso contributo da melhor maneira possível, sem focar no que se vai comer, quando chegar à casa ou na renda que está no fim…

Juízes devem, apenas, pautar-se pela legalidade, ao impedir cobertura jornalística

O Crime — Pode apresentar-nos o Gabinete de Comunicação Institucional e Imprensa, que nos parece novo?

Pedro Chilicuessue — Estamos à frente deste gabinete desde 4 de Agosto de 2020. O gabinete, como tal, sempre existiu, provavelmente o que há de novo é a dinâmica que queremos conferir na relação com os órgãos de comunicação social. Hoje, o mundo é veloz e o Conselho Superior da Magistratura Judicial e o Tribunal Supremo, atentos, exactamente, a este pormenor, de que é preciso nos comunicarmos mais, para evitar especulações, estão a potenciar este lado. Ainda não estamos satisfeitos, mas já começamos.

Este exercício concorre para que os mal-intencionados tenham cada vez menos espaço para mentir os jornalistas, porque o jornalista deve saber onde buscar uma informação credível, para melhor cumprir o seu dever, daí que se pretende harmonizar os dois mundos. Nós não olhamos para a existência de jornalistas privados ou públicos, todos eles são, para nós, filhos da mesma idade e devem ter os mesmos direitos e deveres. Estamos abertos para continuarmos a interagir e, de novo, agradecer por esta primeira entrevista com o jornal O Crime, ao qual encorajamos e incentivamos, para que siga na linha da especialização de um jornal, iminentemente, jurídico, a julgar pelo seu tema e as matérias que, tendencialmente, traz para o seu público leitor.

O Crime — O que a lei quer dizer, ao referir que o julgamento é publico?

Pedro Chilicuessue — É a lei que impõe, a começar pela disposição contida no artigo 174.º da Constituição, que diz que os tribunais são órgãos de soberania, com competência de administrar a justiça em nome do povo. Portanto, é justamente por administrar a justiça em nome do povo, da salvaguarda do interesse público ou privado, que ela deve estar aberta a este mesmo povo, público, não estando restringida a participação nas audiências de julgamento.

Obviamente, cada julgamento é um julgamento, pelo que, o juiz que preside a audiência deve anunciar aos participantes, não só às partes processuais, as medidas que devem ser observadas durante o julgamento, no sentido de manter a ordem, a disciplina que essa solenidade impõe.

Portanto, a audiência é uma sessão pública por conta disso, porque nela participa não só as partes directamente ligadas ao processo em julgamento, como também o público interessado, se calhar, em aprender, pois é, também, um momento pedagógico para os futuros operadores da justiça e do Direito, futuros juízes, escrivães e procuradores.

O Crime — Quais são os limites da publicidade do julgamento?

Pedro Chilicuessue — A norma contida no artigo 407.º do Código do Processo Penal diz que a audiência de julgamento é pública, salvo se o tribunal entender que a publicidade pode ofender a moral, o interesse ou a ordem pública. Só nestes casos é que a audiência deve ser declarada secreta. Mas, ainda assim, essa declaração deve ser feita previamente, ou seja, antes do início do julgamento propriamente dito, o juiz que tem a seu cargo a direcção da audiência deve anunciar que determinadas pessoas presentes devem abandonar a sala, porque a matéria a ser abordada não deve ser tornada pública, para deixar que, da audiência de julgamento, participe apenas as pessoas directamente ligadas.

O Crime — Pode um juiz, enquanto presidente da sessão de julgamento, proibir, deliberadamente, que se faça anotações e fotografias, para efeito de cobertura jornalística?

Pedro Chilicuessue — É uma pergunta que eu gostava de responder com sim e não. Sim, porque é ao juiz que incumbe a presidência da audiência de julgamento, nos termos do artigo 409.º do CPP. Não, porque ele está ali para dirigir, marcando todos os seus actos, com base no princípio da legalidade e não com base na arbitrariedade. Portanto, se o juiz entende, nos termos que a lei prevê, que a presença de determinadas pessoas, que determinados movimentos, durante a audiência, vão perturbar a ordem ou o interesse que se pretende alcançar, pondo em crise a moral pública, então deve advertir as pessoas ou os profissionais da informação, designadamente aos jornalistas, que devem abandonar a sala, porque não é conveniente que aquela audiência seja por eles reportada ou tornada pública, mas não com base na arbitrariedade, e sim com cortesia, porque é isso que a lei recomenda, aliás, presume-se que um juiz é uma pessoa moralmente equilibrada, portanto, não pode guiar-se por arbitrariedade.

O Crime — Tendo o jornal O Crime uma autorização do Tribunal Provincial de Luanda, para cobertura jornalística de julgamentos que ocorrem nesta circunscrição, como se explica as atitudes de alguns juízes em negarem que se faça?

Pedro Chilicuessue — Sendo atitudes isoladas, posso dizer que é a primeira vez que ouço da voz de uma jornalista, mas devo dizer que, não obstante existir, no plano administrativo, a figura de juiz presidente do tribunal que, nestes termos, cuida do expediente de natureza administrativa, o presidente dos autos é o juiz concreto para aquele processo e, provavelmente, um juiz presidente não tem o domínio sobre aquele processo, só nestes casos é que se passa esse laivo de encontro, entre o pensamento do juiz presidente de uma determinada província e o juiz presidente daquele julgamento.

Como disse, são casos isolados, não é isso que a lei recomenda, mas o Conselho Superior da Magistratura, que é o órgão de gestão e disciplina dos magistrados, está atento a tudo isto e, certamente, nos encontros que vai organizando, vai acautelar, para que essas situações pouco abonatórias, que não agregam valor à actividade judicatória, não façam morada nos actos praticados por determinados juízes no exercício das suas funções.

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