“Cabrito come onde está amarrado”: CIDADÃOS DENUNCIAM ACTOS DE CORRUPÇÃO ÀS PORTAS DAS CONSERVATÓRIAS DE LUANDA

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Dezenas de angolanos denunciaram, a este jornal, na última quarta-feira de Agosto, cenas de corrupção nas conservatórias da capital do país. Segundo os utentes, só têm atendimento imediato aqueles que pagam um valor de, pelo menos, 5 mil kwanzas, a um dos muitos intermediários com forte influência no interior das lojas de registo. “É um esquema criado pelos funcionários”, dizem.

Por: Jaime Tabo

O alegado esquema de corrupção tem sido, de acordo com os utentes, a principal causa da elevação do número de pessoas “encravadas” nas lojas de Registo Civil para adquirirem o direito à cidadania. Adultos e menores de várias idades, cada vez mais, entram nas fileiras da luta pelo Registo Civil.

Dentre muitos, está Fonseca Augusto, 30 anos, que, por cerca de três meses, tenta tratar o registo de seu filho, na loja de Viana, porém, as “voltas” por que tem passado, no decorrer do processo, são tantas que já pensa em desistir. “São três meses de espera, o telefone para marcação nunca chama, dizem sempre que tenho de aguardar, mas, até aqui, nada!”, queixou-se, ao acrescentar “tudo isso porque não paguei os 5 mil a um desses intermediários”.

Na mesma loja de registo, Simão Domingos, 55 anos, que está com excesso de faltas no posto de serviço, recebeu a informação de um dos funcionários de que o registo de seu filho “ainda não saiu por falta de tinteiro na máquina impressora!”, por isso, diz “estou há cerca de duas semanas atrás do documento e nada. Inventaram história de falta de tinteiro para omitir o esquema de corrupção”.

Na mesma senda, desde segunda-feira, 24 de Agosto, até à data desta reportagem, Gerónimo Agostinho, professor de profissão, está na tentativa de renovar o seu Bilhete de Identidade que caducou, porém, nada se tem feito.

“Estou a aguardar pela chamada, mas, até aqui, nenhum nome foi chamado e várias pessoas já entraram”, falou num momento em que o relógio marcava 9h20 minutos. Agostinho adianta já ter feito a marcação há, pelo menos, vinte dias. “No primeiro dia em que vim marcar, depois de várias tentativas sem sucesso por via telefónica, um dos intermediários externo, dos que têm colaboração com o pessoal de dentro, pediu-me cinco mil kwanzas para dar um outro ritmo ao meu processo”, denunciou.

Este docente apelou à Inspecção Geral da Administração do Estado (IGAE) que passe por essas instituições, fazendo uma investigação profunda, pois, afirma, tem-se brincado muito com o trabalho. “Se assim o fizerem, garanto que vão pegar, pelo menos, um funcionário em flagrante”.

No posto do Km 30, os utentes sentem-se agastados com o problema da corrupção, onde, segundo eles, os seguranças e os funcionários cooperam num esquema em que os primeiros recebem o dinheiro, em troca de fornecerem um lugar mais próximo para o atendimento.

“Existem intermediários, mas temos trabalhado com a Polícia”

Por seu turno, Aerton Dias, administrador da loja de registos de Viana, responde que, com o sistema de marcações, não é necessária a presença de tanta gente, diariamente, nas portas das lojas, pois, cada um tem um dia agendado para o seu atendimento.

No entanto, o administrador reconhece que “há intermediários que perpetram crimes de corrupção”, mas garante que a instituição  que dirige tem trabalhado com a Polícia Nacional, para que este órgão faça o seu devido trabalho.

Deste modo, Aerton Dias esclarece que a documentação requerida para tratar o Bilhete de Identidade já foi revista, sendo que, hoje, precisa-se apenas do Bilhete de Identidade dos pais do requerente, quando este apresenta sinais na fala e/ou na fisionomia que levantam dúvidas sobre a sua real nacionalidade. Assim, assevera, “hoje, é mais fácil ter a documentação, se comparado aos tempos passados”.

Além do mais, avança, “só o município de Viana conta, agora, com cerca de 12 postos de Registo Civil” e na loja que dirige são atendidas, em média, 60 a 70 pessoas, diariamente, número ainda bastante reduzido, segundo os populares daquele município de Luanda.

Ao contrário do que a reportagem constatou no local, Aerton diz que os mais velhos e as crianças têm prioridade no atendimento. Pelo sim ou pelo não, os utentes afirmam não haver prioridade para ninguém, nem mesmo para os reduzidos fisicamente.

Governo afina programa de massificação de registo

Dados do UNICEF estimam que, no país, nasceram, no primeiro dia deste ano, uma média de 3 mil e 740 bebés. Este número pode ser a média dos dias subsequentes, ao longo de um ano. Se for o caso, nascem, por ano, 1 milhão e 365 mil e 100 crianças.

Informações do Ministério da Justiça indicam que, com a entrada das Brigadas de Registo de Nascimento, foram registadas, no ano passado, 1 milhão e 100 mil cidadãos. Esta cifra engloba adultos e crianças, o que, analisado com os dados de bebés que nascem, muitas ficam excluídas da cidadania.

O Governo aprovou, no ano passado, um programa de massificação de registo de nascimento, que abriu no dia 8 de Novembro de 2019 e termina em 2022. O Director Nacional dos Registos e Notariados, Israel Nambi, disse que as brigadas de massificação estão a ser instaladas nas administrações municipais e comunais. “Nesta altura, se for às administrações distritais do Cazenga, vai encontrar as Brigadas de Massificação de Registo de Nascimento”, indicou.

“Estamos numa fase de afinação do projecto”, aponta, informando que o país já conta com 50 brigadas. Ao admitir que mais brigadas vão ser instaladas ao longo do ano, Israel Nambi assevera que a abertura de brigadas é um mecanismo para reverter uma situação menos abonatória, pois, além da necessidade de mais espaços, o sector regista uma limitação em termos de recursos humanos.

“Uma conservatória tem vários serviços, nomeadamente, áreas de registo de nascimento, óbito e casamento”, diz Israel Nambi, reconhecendo que o pessoal que fica alocado para o acto de registo é insuficiente, ao mesmo tempo que justifica que o programa do Governo propõe registar mais de 12 milhões de cidadãos dentro de três anos.

O responsável afirmou que a campanha foi lançada com base nos dados do último censo populacional do INE, que indicava que quarenta por cento da população não tinha registo de nascimento. “Tendo em conta que somos, aproximadamente, 30 milhões de cidadãos, pressupõe-se que temos 12 milhões de pessoas privadas de registo, daí que o programa prevê registar este número de pessoas”.

Entretanto, todos podem já fazer o registo no Cazenga, Sambizanga, Dom Bosco, Morro dos Veados, Baia, Bué do Rangel e Quilometro 30, tendo Israel Nambi pedido à população para denunciar todos os casos de extorsão que possam ocorrer, através dos terminais afixados nas conservatórias. “A área de inspecção tem accionado os mecanismos legais para pôr cobro à situação”.

Registo antes e durante a covid-19

Antes da pandemia da Covid-19, nas conservatórias de Luanda, diariamente, dezenas de pessoas pernoitavam ao relento com o fim único de garantir a cidadania. Riscos como o de cruzar com marginais e contrair enfermidades eram enfrentados por pessoas que desejavam ser legalmente angolanas.

A luta pela cidadania foi, e ainda é, renhida, fazendo lembrar as infinitas filas serpenteadas no tempo do mono-partidarismo. “Na época, para adquirir pão, arroz e outros bens da cesta básica, na loja do povo, tinha de acordar à madrugada ou passar a noite ao relento. Até as pedras ocupavam espaços. Ou seja, tinham rostos abstractos, porque substituíam, literalmente, homens de carne e osso”, recorda um ancião que quase revive a mesma cena.

Os cidadãos contam que, antes da Covid-19, os guardas e algumas pessoas chegavam cedo para ocupar lugar e depois vender, ao preço que bem entendessem.

Entretanto, hoje, em tempos da pandemia, as vigílias acabaram, mas as filas não. Apesar do agendamento preciso, como vimos acima, a problemática da corrupção ainda é assente e o madrugar ainda se faz necessário na visão de muitos cidadãos.

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