Caso 500 milhões retomou com acusação de Sérgio Raimundo: “MINISTÉRIO PÚBLICO CUMPRE MISSÃO DE INFLUENCIAR A CONDENAÇÃO OBRIGATÓRIA DOS RÉUS”

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O regresso dos trabalhos, na terça-feira, 30 de Junho passado, depois do interregno devido a pandemia da Covid-19, marcou também a entrada do processo na fase das alegações finais. Ao esgrimir os argumentos em defesa do seu constituinte, o ex-governador do BNA, Sérgio Raimundo acusou o MP de estar a “conduzir a missão de influenciar o Tribunal a condenar os co-réus Valter Filipe, José Filomeno “Zenu” dos Santos, Jorge Gaudens Pontes e António Samalia Bule”.

 Texto: Dumilde Fuxi

Na sessão da passada terça-feira, 30 de Junho, Sérgio Raimundo adiantou, também, que a carta enviada pelo ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos deve ser valorizada pelo Tribunal e não pelo Ministério Público.
O causídico proferiu tais palavras em resposta a proposta de condenação dos réus apresentada pelo Ministério Público e pelo facto de aquele órgão considerar que a “carta enviada por José Eduardo dos Santos” a confirmar que a operação da transferência dos USD 500 milhões foi feita com a sua anuência, não é prova suficiente para absolver os réus, que “pretendiam burlar o Estado”.
Ao abordar sobre a idoneidade do documento, posta em causa pelo magistrado Pascoal Joaquim, o advogado justificou que o ex-Presidente “limitou-se a responder por escrito e em particular, e não pela via da carta rogatória, porque assim o Tribunal solicitou, através da Fundação José Eduardo dos Santos”, e deve ser este órgão a dar valor ao documento, não o MP.
“Se a nossa intenção é fazer justiça e descobrir a verdade material, é assustador ouvir do MP a intenção de não valorar as declarações do então Presidente da República, o que demonstra, claramente, que há um propósito bem delineado para obrigar este venerando Tribunal a condenar estes coitados, com ou sem provas. Temos que ser um pouco mais sérios”, alertou.
Na mesma senda, o advoga Bangula Kemba diz ser falta de honestidade o MP exigir, do ex-Presidente, uma carta autenticada ou rogatória, “quando a sua própria carta, que veio de uma congénere (da Suécia), ser uma cópia e nem sequer está autenticada”.
Bangula Kemba, mandatário do co-réu Jorge Gaudens, relembrou as fases anteriores do processo para acusar o MP de “impedir” a audição de José Eduardo dos Santos. “Foi o MP que, desde a instrução, sempre negou-se a ouvir o ex-Presidente. Se não fosse vossas excelências (o colectivo de juízes), ele nunca teria sido ouvido. Se a carta que aqui foi lida é falsa, que intentasse um incidente de falsidade”, aventou o advogado.
Para Sérgio Raimundo, o magistrado do MP equivocou-se nas suas alegações, ao atribuir, ao seu constituinte, a prática do crime de burla por defraudação, “até porque não consta na acusação que fez no início do processo”. Era, cita o advogado, o crime continuado de peculato, branqueamento de capitais e associação criminosa, este último afastado pelo tribunal, em sede de recurso ao despacho de pronúncia.
“Isto vem demonstrar, evidentemente, que em momento algum a acção dos arguidos foi concertada. Sendo assim, parece-me não ser possível o desvio de USD 500 milhões com a intervenção de tantas pessoas, sem coordenação na acção entre vários intervenientes”, justificou, concluindo não haver, por parte dos réus, alguma intenção de cometer os crimes de que estão a ser julgados, nem provas para tal. “Alías, Valter Filipe foi o primeiro a solicitar o estorno da operação”, lembrou.
Para o MP, a responsabilidade de cada um dos réus ficou provada. Por isso requereu a condenação de Valter Filipe e António Samalia Bule, “pela qualidade de guardiões do Banco Central, com responsabilidades acrescidas de quem se esperava a protecção do bem público”, a uma pena única não inferior a dez anos de prisão maior, em cúmulo jurídico.
Quanto a Jorge Gaudens Pontes e José Filomeno “Zenu” dos Santos, considerou as atenuantes e a recuperação dos montantes em causa, para requerer a condenação a uma pena única não inferior a sete anos de prisão maior.
O fiscalizador da Justiça solicitou ainda a condenação dos réus ao pagamento de uma indeminização ao Estado angolano, “atendendo aos graves prejuízos causados a sua imagem e ao bom nome, reputação e credibilidade”.
A defesa dos quatro arguidos insiste em não haver provas de que os mesmos cometeram os crimes de que vêm acusados e pronunciados, por isso solicitaram ao tribunal a absolvição dos seus constituintes.

As acusações

Segundo o procurador-geral adjunto da República, Pascoal Joaquim os réus aproveitaram-se “das suas qualidades e funções para de forma consciente, voluntária e concertada se locupletarem do dinheiro do Estado angolano”. Pascoal Joaquim disse que os arguidos “mesmo sabendo que as suas condutas eram ilícitas”, “não se coibiram de praticá-las, pois visavam a todo o custo atingir os fins que apontavam para a apropriação de dinheiros públicos, fato que ficou subjacente com a prova colhida”. O procurador-geral adjunto referiu ainda que os arguidos se outorgaram donos dos valores transferidos, com a rápida assinatura de um acordo de confiança em que retiravam ao BNA a possibilidade de reivindicar os montantes.
Para o MP, os arguidos Valter Filipe e António Bule Manuel, ao passarem a ideia da existência de um sindicato de bancos, que iria sustentar a criação de um fundo estratégico de investimento para Angola no valor de 30 mil milhões de euros, “sabendo que o mesmo não existia”, cometeram, em co-autoria material, o crime de burla por defraudação, bem como o de peculato. Os arguidos Jorge Gaudens Sebastião, empresário, e José Filomeno “Zenu” dos Santos, ex-presidente do Fundo Soberano de Angola e filho do antigo Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, são acusados de cometerem, em co-autoria moral e material, na forma consumada e continuada, o crime de burla por defraudação, além do tráfico de influência e branqueamento de capitais. O procurador-geral adjunto da República considerou que a recuperação dos montantes não afasta a ilicitude da conduta dos réus, porquanto houve consumação dos fatos.

MP disse que carta de JES não tem valor

O MP pediu também que o tribunal não considarasse a carta em que o antigo Presidente angolano confirmou ter autorizado Valter Filipe a realizar a transferência dos 500 milhões de dólares, pois a condição de antigo Chefe de Estado não lhe outorga o privilégio de prestar declarações fora do circuito que a lei estabelece. Pascoal Joaquim desvalorizou a carta enviada pelo antigo Presidente da República em resposta porque para ele não é senão um mero recorte de papel com inscrição e um conteúdo cujo valor de prova é posto em causa, uma vez que não é uma carta original, sendo uma cópia eventualmente recebida por via digitalizada, do subscritor para uma instituição do seu pelouro, que, por seu turno, a fez chegar ao venerando tribunal e, por conseguinte, suscita dúvidas”, referiu.

Defesa riposta

Do lado da defesa, Sérgio Raimundo, advogado do ex-governador do BNA, refutou a prática do crime de burla por defraudação, atribuída pelo MP por considerar que o seu constituinte foi apenas executor de uma ordem do antigo Chefe de Estado, José Eduardo dos Santos. Raimundo disse que a intenção do Tribunal é de “apenas de condenar por condenar” mesmo não havendo provas dos crimes que são imputados aos réus. “Este julgamento é um instrumento de propaganda política”, acusou. Também o jurista Pedro Capracata considera tratar-se de um julgamento que visa mais fins políticos do que jurídicos, “para branquear a imagem das pessoas”.

Leitura dos quesitos

A sessão de discussão e julgamento prosseguiu no 9 de Julho, com a leitura, discussão e aprovação dos quesitos, fase que antecede a leitura do acórdão, em que o juiz da causa considerou que os arguidos utilizaram uma intricada teia no circuito financeiro internacional afim de se lhe perder o rasto e lhe conferir uma aparência de origem lícita que culminaria, no final, nas suas mãos.
João da Cruz Pitra disse que tudo isso foi feito pelos arguidos, através de sociedades por si, ou por seus associados, criadas ou participadas em Angola e no estrangeiro. O magistrado judicial afirmou que José Filomeno “Zenu” dos Santos, valendo-se dos contactos que tinha, sempre interveio no processo como representante da empresa Mais Financial Service, de Jorge Gaudens Pontes Sebastião.
O juiz disse que “os arguidos urdiram o plano de se apropriarem de dinheiros do Estado angolano, quer por via de contactos e influências que lhes dava acesso privilegiado aos corredores do poder instituído e centro de decisões, usando dos vínculos familiares e afectivos que uns e outros mantinham entre si e com o então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, quer pelas empresas dormentes.”
João da Cruz Pitra afirmou ainda que os arguidos tentaram levar o Estado angolano a conferir legitimidade a uma operação bancária absolutamente irregular com o propósito de enganar.  O juiz declarou que as empresas foram criadas apenas com o propósito de apropriarem-se de 1,5 mil milhões de dólares do Estado.
Segundo o magistrado, a empresa, cuja conta recebeu o depósito dos 500 milhões de dólares do BNA (Perfectbit), depois da retenção dos 500 milhões de dólares, instada a devolver, condicionou a devolução ao compromisso do Estado angolano de abdicar de qualquer procedimento criminal contra si e seus associados.
“Os arguidos, com intenção de obter vantagens para si e enriquecimento ilegítimo para terceiros, por meio de erro ou engano de factos que astuciosamente provocaram, designadamente a convicção de que existia um sindicato bancário e empresas inexistentes, determinaram terceiros a prática de actos que causaram ao Estado angolano um prejuízo patrimonial”, disse.
O juiz afirmou que Valter Filipe e António Samalia deram um destino diverso aos valores pecuniários que lhes foram entregues pelo BNA, usufruindo de tais montantes em seu proveito próprio ou de terceiros, agindo como se o dinheiro fosse deles. Na vez dos quesitos (perguntas) pessoais, os réus,  segundo o juiz, mostraram-se arrependidos.
Nos quesitos relativos a “Zenu” dos Santos, o juiz disse que o filho do ex-Presidente da República agiu na qualidade de presidente do conselho de administração do Fundo Soberano para fazer chegar a carta do BNP Paribas que propunha a criação de um fundo de investimento estratégico no valor de 30 mil milhões de euros.
O julgamento retoma nos próximos dias com a leitura do aórdão.  

 

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