MAIS DE 120 FUNCIONÁRIOS DO GPL: CHORAM POR SALÁRIOS HÁ MAIS DE 20 MESES
Os trabalhadores “gritam de fome” … são detidos e, de seguida, levados a julgamento sumário. O Tribunal Provincial de Luanda nega mandar à cadeia os 16 funcionários que se dizem em desespero…
Por: Liberato Furtado
Dos poucos mais de 120 funcionários dos Serviços Comunitários da Comissão Administrativa de Luanda que se manifestaram junto do Governo Provincial de Luanda, no passado dia de 25 de Agosto de 2020, dezasseis (16) foram detidos e levados a julgamento sumário, no dia seguinte, quarta-feira, 26.
Depois de passarem mais de 24 horas sem comer, retirados das celas da Esquadra de Polícia do Bairro Uíge, Ngola Kiluanje, foram levados ao Tribunal Provincial de Luanda, invocando-se, no “auto de notícia” (uma espécie de processo acusatório, usado em julgamento sumário), invasão ao interior das instalações do Governo Provincial de Luanda, causando pânico e distúrbios, empurrando agentes da Ordem e o não respeito às medidas de biossegurança, consubstanciadas no Decreto Presidencial 212/12, que versa sobre as medidas de segurança como prevenção à covid-19.
Os trabalhadores reivindicavam os seus salários em atraso há mais de 20 meses e, segundo os visados, não viam meios de serem ouvidos, pois, todas as formas as quais recorreram, por via administrativa e pacífica, fizeram-se “ouvidos moucos”.
Num beco sem saída, entre o contido grito de fome, o choro dos filhos, o lamento da mulher, enfim, o desmoronar da família e o sempre protelado dia da bênção que o salário cai, nessa terça-feira, 25, o cinto da paciência de cada um deles já não teve por onde acrescentar mais um “furo de pachorra”.
Alexandre Zua, um dos 16 funcionários levados a julgamento sumário, desfolha “somos funcionários da Comissão Administrativa de Luanda, nos Serviços Comunitários, junto dos diferentes distritos urbanos, com salários em atraso há mais de 20 meses. Reagimos do modo que o fizemos e disseram-nos que cometemos crime. Mas sabemos bem que uma pessoa, na condição em que nos encontramos, deixa de ser normal, no meu ponto de vista, porque é uma pessoa com família, com outras pessoas para cuidar e essas condições em que estamos submetidos se tornam cada vez mais difícil. E nós, não sabendo do horizonte que nos levará ao pagamento do salário, nos enchemos de razão para ir, nesse dia, reivindicar os nossos salários”. Essa não foi a primeira vez que tiveram de apelar pelos seus direitos surripiados.
“Antes, como municípios (Maianga, Sambizanga, Ingombota, Rangel, Kilamba Kiaxi), estivemos bem… Mas depois de se criar, em 2002, a Comissão Administrativa, começamos a deparar-nos com atrasos salariais e, com isso, um enorme transtorno nas nossas vidas, levando a uma luta terrível com a Comissão e, quando não houvesse entendimento, recorríamos ao Governo Provincial de Luanda, porque sentimos que é a casa mãe. Tanto assim é que, das vezes que lá fomos, atenderam-nos e resolveram as nossas demandas”, continua a narração.
E, na esperança de encontrar a mesma sensibilidade na nova governadora, foram lá bater as portas, porém, não se verificou, daí que os ânimos se alteraram e chegou-se a tribunal.
O réu, humilde nos seus termos, também é enfático na causa que os une.
“Quanto aos recursos por via administrativa, por causa desses salários, já fizemos muitos. Já escrevemos para o Ministério do Urbanismo e Território, já escrevemos para o Governo Provincial, já o fizemos, também, à presidência da Comissão Administrativa, muitas vezes. Quer dizer, são muitas as situações que nos levaram à reacção em frente ao Governo Provincial, porque a vida, desse jeito, está muito difícil”.
Mais transtornado ainda, diz “o que não se compreende é que, logo no início do Estado de Emergência, o Presidente da República determinou que não se devia deixar de pagar os salários, principalmente, nos órgãos públicos, mas, entre nós, os nossos chefes que pertencem ao Estado, que é um ente de bem, não deram importância ao estabelecido em Decreto Presidencial”.
Assim, Alexandre Zua pergunta a quem quer ouvir “… aos desfavorecidos estão a dar cestas básicas e nós, que trabalhamos de sol a sol, não merecemos nem o salário, fruto do nosso suor? Aqueles é que são os desfavorecidos e nós não?! Está difícil a situação”.
Um sofrimento que ninguém quer saber. “Esse nosso colega sai do Sequele a pé até ao 1.º de Maio para trabalhar e outros com situações igualmente muito dolorosas… Não temos apoio dos nossos administradores, eles dizem que não é com eles, que é com a Comissão Administrativa, esta, por sua vez, diz que é com as Finanças… também já recorremos às Finanças e nos disseram que não têm uma rubrica para atender o nosso pedido… enfim, “n” desculpas que nos embaralham e acabamos perdidos num mato sem cachorro”.
Estão nesta condição cerca de 125 funcionários, entre os quais alguns administrativos e outros do município do Kilamba Kiaxi. Alexandre Zua, a fechar a “caixa de pandora”, nos disse que nem os assiste o direito de gozo de férias, subsídios de férias e de 13.º, “quando o Governo compra diversos meios técnicos com os quais trabalhamos, tal como camiões, pás retroescavadoras e todo um leque de máquinas, porque nós, também, fazemos terraplanagem… então, nos ocorre: e nós que usamos os meios somos seres sem direitos?”.
“É a fome, é a fome!… Há colegas que já perderam a mulher… Desde o ano passado que os filhos já não estudam”
Como é consabido, há uma íntima relação entre o salário, a saúde, a habitação e as oportunidades que podem promover a vida do indivíduo, sendo que a vida faz parte dos direitos indisponíveis, ou seja, daqueles que a pessoa não pode abrir mão.
Lourenço João Francisco, um dos mais velhos do grupo de funcionários levados a tribunal, quando o perguntamos porque marcharam para o Governo Provincial de Luanda, com sílabas a saírem com comoção visível, respondeu-nos “é a fome, é a fome!”.
“Durante todo esse tempo da pandemia, a começar pelo Estado de Emergência, trabalhamos sem limitações, desinfectamos a cidade, todas as unidades policiais e outras da administração pública; fizemos podas, fizemos substituições de manilhas que, sendo feitas por privados, a factura seria alta; fizemos todo o trabalho a que fomos chamados, até socorremos as empresas de limpeza de Luanda”, adicionou, exaustivamente.
Afinal de contas, Luanda que vemos hoje poderia estar bem pior. “Acreditamos, inclusive, que se não fosse a nossa ajuda, a capital estaria muito suja. Mas o fizemos porque somos parceiros do Estado, contando que devemos receber salários.
A nossa reivindicação foi em busca de pessoas de boa-fé, mas fomos mal entendidos ou nos julgam seres sem direitos. Há aqui colegas que já perderam a mulher e o lar, uns estão a viver no estaleiro, outros, as mulheres a viver com a família e os filhos noutro extremo. Desde o ano passado que os filhos já não estudam…”.
As nossas mulheres, ouve-se o lamento, que são zungueiras, nesse momento, também, decaíram, porque o negócio já não está a dar dinheiro, e são nossas ajudantes, o nosso suporte. “Graças a elas aguentamos até hoje. As nossas mulheres são sofredoras, isso nos levou a manifestar o nosso sofrimento. Já eles, nos compreenderam mal, fecharam-nos e colocaram-nos na cadeia”.
A seguir, na sua simplicidade, surpreende-nos nas cirúrgicas interrogações. “Agora eu pergunto: afinal, quem tem fome e reclama da fome é pecado?! Você, com 22 meses sem salário, se reivindicar, é mal, é pecado, se dizem que saco vazio não fica em pé?! O salário é um poderoso motivador, pois com ele realizamos as nossas funções na sociedade”.
Joaquim Maiombo, outro dos 16 réus, um dos mais novos, contou-nos que já tiveram uma comissão criada com o fito de negociar, mas sempre foi ignorada, chegando ao cúmulo de serem tratados como objectos, “a Amélia Rita chamou-nos de carraças…”.
Juiz Adélio Chocolate coloca a justiça antes da lei
Diante do mar de vicissitudes expostas àqueles trabalhadores, o Tribunal Provincial de Luanda não enterrou o pescoço n’areia, feito avestruz, e usou dos preceitos da Constituição da República para sustentar a absolvição dos 16 réus, alertando que está em causa direitos fundamentais, sendo que, a precariedade em que se encontram, tira do norte qualquer homem que se preze.
No final, por volta das 20h30, aqueles réus esqueceram-se da fome que roía-lhes as entranhas, porque nem comida lhes foi dada durante o período em que estiveram detidos, e, satisfeitos, agradeceram ao tribunal por, mais uma vez, com coerência aliada à justiça, fizerem valer a lei e prevalecer os direitos do cidadão, segundo o mais kota dos visados.
E, assim, a apreensão que dominou o semblante dos desafortunados, antes do julgamento, se desvaneceu e deu lugar a comemorada soltura, para o desagrado de quem esperava se ver livre daquelas “carraças”, desabafou um deles, em meio os assobios pelos festejos.
Em suma, o Estado respeita e protege a pessoa e a dignidade humana. Foi sob este “pano de fundo” que o juiz do Tribunal Provincial de Luanda, Adélio Chocolate, mandou para casa e em paz os 16 funcionários do Governo Provincial de Luanda que estão há 22 meses sem salários e, por reivindicarem, foram levados às barras do tribunal.
Para aqueles que, por desventura, se tenham esquecido, lembramos que o direito ao salário, que promove o direito à alimentação e à habitação, figura no rol das necessidades mais básicas do ser humano. É um direito humano universal, aceite e aplicável em todas as partes do mundo como um dos direitos fundamentais para a vida das pessoas.