“Se Maomé não vai à montanha, montanha vai a Maomé”: JUÍZA MANDA PARA “KUZUEIRA” AGENTES DA ORDEM

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O Tribunal Provincial de Luanda, Palácio Dona Ana Joaquina, deu lugar a um julgamento sumário, 25 de Agosto, com desfecho, de todo, atípico ou, se quisermos, incomum.

Por: Liberato Furtado

Tudo começa no dia 19 de Agosto, tendo como palco dos acontecimentos a Rua Rainha Njinga, quando, Angélica Bemba Manuel, movida por uma situação de óbito, sai de casa, longe de lhe ocorrer que acabaria o dia na cadeia, tudo porque três agentes da ordem terão cismado com a sua presença na rua, além das 20 horas.

Sensivelmente sete dias depois, é levada a julgamento sumário ao Tribunal Provincial de Luanda, dependência do Palácio Dona Ana Joaquina, e aquela (Angélica Manuel), nem em último acto de desespero de causa a ocorreu o final que lhe sorriu.

Na sessão de julgamento, leu-se, do auto de notícia (que funciona como uma participação acusatória, em processo sumário), que o Praça da Polícia Militar, Félix Chigika Adriano, que fazia patrulhamento conjunto com mais dois agentes da Polícia Nacional, pertencentes a 4.ª Esquadra, sita na Maianga, procedeu à detenção da também conhecida por Ângel, de 29 anos de idade, pelo facto de se encontrar na via pública, nas imediações do Museu da Moeda, sentada com três amigas suas, à espera de clientes para se prostituírem.

O documento conta, ainda, que foram avisadas pelos agentes que deviam abandonar o local e dirigirem-se para a casa, tendo em linha de conta o Estado de Calamidade. Passados mais ou menos 30 minutos, depois de terem feito o patrulhamento nas redondezas, ao passarem pelo mesmo local, depararam-se com a arguida e voltaram a tentar persuadi-la a ir à casa. Os autos relatam que a mesma respondeu com arrogância, negando-se a obedecer as recomendações da Polícia.

Por sua vez, o Praça da Polícia Militar, que elaborou a informação que vai dar ao tribunal, conta, ainda, que a ré refutou os argumentos da Polícia, dizendo que não abandonaria o local e que, se quisessem a matar, que o fizessem…

Acto contínuo, descrevem os autos, com a aproximação do militar, aquela teria arrancado a máscara facial do tropa, tê-lo-ia agarrado pela farda e arrancado um botão e, ainda, tentado arrancar-lhe a arma das mãos.

Foram os seus colegas, conta o militar, que saíram em seu auxílio, usando da força, batendo-a nas mãos, para conseguirem separá-la da farda e da arma que tentava ter em posse. Porém, ainda assim, continua, a ré manteve o alvoroço, resistindo à ordem de detenção.

Já no final da narração, o militar conta que, estando no Piquete, a ré parte para ameaças, prometendo arranjar um bandido para o matar ou “enfeitiçar”.

A visada, Angélica Bemba Manuel, diga-se de passagem, é uma mulher com atributos físicos que nem de longe passam despercebidos. Agregado a esse facto, está o “pequeno grande” pormenor de a mesma ter estado com roupas que realçavam os “contornos corporais”.

Entretanto, a sua versão é diferente da anteriormente contada. Ela diz que eram por volta das 20 horas que estava de regresso de um óbito, no bairro Boavista, onde a mãe da vizinha havia falecido, tendo ido em dever de compaixão.

De regresso, depois de lá ter passado duas noites, encontrando-se numa paragem de táxi, conta que os três agentes da ordem a interpelaram, alegando que aquela hora não era recomendável estar na rua, tendo ela explicado as razões que a levaram a estar ali e aquela hora (20h).

Angélica conta, ainda, que um senhor, que também lá se encontrava, saiu em sua defesa, dizendo que não passavam das vinte horas, não havendo razões aparentes para a abordagem, senão o facto de ser mulher.

Daí, Angélica, que reconhece ter dificuldades em se comunicar em português, começou a disputa, acabando por se ver a ser arrastada pelo Praça da Polícia Militar, de pouco valendo os apelos de que era uma mãe de família e responsável pelo lar, pois, continuou a ser arrastada até ao carro patrulheiro, que parou porque alertado pela confusão que se gerou.

A ré abre um parêntesis para contar que alguns integrantes do patrulheiro saíram a seu favor, reprovando o modo como estava a ser tratada, com a particularidade de se tratar de uma mulher; mas nem isso demoveu os agentes que, sublinha Angélica, tinham em mão pacotes de whisky (the best).

Na sequência, diz, um dos polícias chegou a dizer que se estava a perder muito tempo em falar ou em dar-lhe palavra, e foi assim que foi arrastada sem dó nem piedade, deixando-a com a roupa toda rasgada e com ferimentos pelo corpo.

Já na Esquadra, a versão de Félix Chigika Adriano e dos agentes da Polícia, Lourenço Baptista Hebo Cândido e Augusto Muinda, como é frequente, diga-se, prevaleceu, e Angélica ficou detida, conforme conta, desde o dia 19 ao dia 25 de Agosto, momento em que é levada ao tribunal, tendo a juíza e a PGR ficado horrorizadas com os ferimentos que trazia a ré.

Por outro lado, Angélica não deixou de reconhecer que resistiu aos intentos dos agentes da ordem, em defesa da sua integridade física. Na ocasião, relatou que foi levada ao Hospital Josina Machel/Maria Pia, em socorro aos ferimentos, mas, logo a seguir, “trancafiada” por sete dias, “quem sabe, para esconder dos olhos da justiça o tremendo atropelo que se havia verificado naquele caso”, admitiu o tribunal.

Não passou despercebido ao Tribunal o facto de tudo ter acontecido na Rua Rainha Njinga, território da 4.ª Esquadra, na Maianga e, no entanto, a ré ter sido encarcerada na Esquadra do Sambizanga, depois de socorrida no Hospital Maria Pia. O Tribunal também quis saber dos agentes se havia recolher obrigatório e não souberam, por fim, para justificar a razão pela qual a ré foi interpelada.

No final daquele julgamento sumário, a juíza, Fernanda Neto Paciência, condenou a ré a trinta dias de prisão, por parcialmente provado o crime de injúrias a agentes da autoridade; um crime que tem uma moldura penal abstracta de até três meses de prisão. Mas pesou, para a redução da pena, algumas circunstâncias atenuantes.

Angélica foi também condenada ao pagamento de uma taxa de justiça no valor de AKZ 5.000,00 (cinco mil kwanzas) e, ainda, ao pagamento de 2.000,00 (dois mil kwanzas) ao seu defensor oficioso. No entanto, a pena foi convertida em multa, com o pagamento de 40 kwanzas ao dia, o que equivale a um total de AKZ 1200,00 (mil e duzentos kwanzas). Para essa decisão, pesou para o tribunal um rol de razões objectivas, tal como o facto de a ré se encontrar debilitada, fruto das agressões sofridas.

O feitiço virou contra o feiticeiro

Até aí nada de mais…. O tribunal, no entanto, reservou a surpresa total para aquele instante em que todos se teriam convencido de ter tudo terminado.

A juíza Fernanda Neto Paciência, de voz sonante, como é hábito, leu o que restava da sentença, começando por dizer que “em face do excesso dos agentes da autoridade, Lourenço Baptista Hebo e Félix Chigica Adriano António Eduardo, no desempenho das suas funções, facto que é notório nas marcas de agressões flagrantes no corpo da ré, o que consubstancia o crime de ofensas corporais voluntárias simples, ordeno, imediatamente, a detenção dos mesmos, para que, em tempo útil, sejam julgados em processo sumário.

Convém dizer que, se a surpresa cobriu o público presente, parecendo tudo irreal, imagine-se com que assombro aqueles declarantes da Polícia Militar e da Ordem Pública ouviram da juíza tal decisão… Infelizmente, não podemos descrever o que terá vasculhado as suas cabeças.

Assim, a juíza da causa, em despacho, mandou extrair cópia integral dos autos, para acompanhar ao Tribunal Militar competente para o julgamento dos novos réus.

Já Angélica Manuel foi encaminhada, por meio de um ofício, ao Laboratório de Criminalística, com o fim de fazer exames médicos, a constarem nos autos contra os agentes da autoridade. E chegou-nos que o Laboratório de Criminalística, prontamente, respondeu a contento. Aí sim, o primeiro final do julgamento.

E, como não podia deixar de ser, Angélica é mais uma cidadã que saiu do Tribunal Provincial de Luanda com o sentimento de justiça realizada, por poder voltar à casa e por ouvir da juíza que os três deverão ser julgados pelo crime cometido contra si.

No final do julgamento sumário, Angélica, na sua simplicidade nos confidenciou, talvez com medo de represálias, que “não precisava irem presos”.

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