CADEIA VAI O U NÃO SER MORADA DE RABELAIS?
Manuel Rabelais foi condenado a 14 anos e 6 meses de prisão, por defraudação calculada em cerca de 22,9 mil milhões de kwanzas ao Estado angolano. A cadeia, por ora, não se torna abrigo, porque assim dita a lei e obsta como causa o recurso intentado pela defesa e deferido pelo tribunal com efeito suspensivo da pena, mas…
Liberato Furtado
Continua a fazer mossa em muitos meios a compreensão sobre o facto de Manuel Rabelais não ser mandado já para os calabouços e, amiúde, se coloca em causa a seriedade dos julgamentos em que estão em causa réus que foram apodados de “marimbondos”.
Para a compreensão dos factos, nos socorremos à Lei, tal como o tribunal, certamente, o fez. Assim, é mister que se perceba: para que não se afronte o princípio constitucional da presunção da inocência, é entendimento legal que, na pendência da pena recorrida, resultante do efeito suspensivo admitido no recurso interposto, esteja o réu a responder em liberdade ou não, o tribunal deve manter a decisão que determinou a situação carcerária em que se encontrava, enquanto respondia em julgamento.
No caso em apreciação, a liberdade dos réus se manterá até que se exaure todas as instâncias processuais ordinárias, tal como seria com outros réus em situação análoga e sem qualquer foro especial, salvo se aqueles não respeitarem os condicionalismos legais impostos pelo tribunal, pois, aí sim, vão parar aos calabouços esses ou outros na condição.
A doutrina do Direito Penal define o efeito suspensivo como aquele que tem o condão de obstar a eficácia de decisão recorrida. Quando um recurso é dotado de efeito suspensivo, ele impedirá que a decisão produza seus efeitos, enquanto não for definitivamente julgado, ou seja, enquanto a decisão não transitar em julgado, não ser definitiva.
Por que não é réu preso?
A imunidade processual consiste na viabilidade de a Assembleia, da qual o parlamentar faça parte, sustar, em qualquer fase antes da decisão final do Poder Judiciário, o prosseguimento da acção penal, intentada contra o parlamentar por crimes cometidos.
A imunidade parlamentar (prevista no artigo 150º da Constituição da República de Angola) não seria um privilégio, mas uma garantia de poder exercer, sem eventuais constrangimentos de ordem política e por extensão judicial, enquanto deputado. Porém, essas garantias para a integridade do parlamentar, em várias paragens, acabam se estendendo para qualquer que seja o âmbito pessoal e, vezes por outra, o deputado acaba por sair privilegiado.
Ora, Rabelais não responde na condição de preso ab initio (desde o início), porque lhe reservavam direitos de imunidade parlamentar. Perde-a, entretanto, para responder em juízo, de acordo a nossa interpretação, com a saída do despacho de pronúncia. No caso sub judice (em julgamento), a retirada da imunidade parlamentar de Manuel Rabelais foi feita depois do trânsito em julgado do Despacho de Pronúncia. Assim, se fez legal que o ex-director do do extinto Gabinete de Revitalização da Comunicação Institucional e Marketing da Administração (GRECIMA) pudesse se manter em liberdade e responder em julgamento na qualidade.
Crimes imputados, provas e condenação
Os crimes, segundo a acusação do Ministério Público e o Despacho de Pronúncia do juiz da causa, foram praticados entre os anos de 2016 e 2017, e as fraudes teriam lesado os cofres públicos em 22,9 mil milhões de kwanzas (30,6 milhões de euros), sendo 4,6 mil milhões de kwanzas (6 milhões de euros) recebidos directamente do Orçamento Geral do Estado (OGE) e 18,3 mil milhões de kwanzas (24,4 milhões de euros) das divisas do Banco Nacional de Angola (BNA).
Pelo Código Penal antigo, vigente à data dos factos, a pena seria subsumida ao montante defraudado, com a penalidade abstracta de 12 a 16 anos de prisão. O Código Penal em vigor, no entanto, prescreve que, com o mesmo montante, a moldura penal abstrata é de 5 a 14 anos de prisão.
Diante de tal dilema, a norma demanda a justiça socorrer-se do princípio da retroactividade da lei penal mais benéfica, que consiste no privilégio constitucional de se usar a lei que condenaria com pena mais leve aquele que está sofrendo persecução criminal.
Essa é configuração da excepção ao princípio da irretroactividade da lei penal. Ou seja, uma nova lei material, excepcionalmente, sempre retroagirá quando encerrar benefício ao réu, total ou parcialmente. Assim, por outras palavras, a lei penal, por regra, não tem valência para abranger situações já consolidadas, mas abre-se excepção quando se ingressa no campo das leis penais mais favoráveis, podendo voltar no tempo para favorecer o agente, ainda que o facto tenha sido decidido por sentença condenatória, com trânsito em julgado.
Daí que foi por observação a esses dispositivos legais que, em alegações orais, o magistrado do Ministério Público, Manuel Domingos, pediu ao tribunal uma condenação para os dois réus que se situava entre os 5 e 14 anos de prisão; de tal sorte que a lei posterior, que é o novo Código Penal angolano, por meio das suas normas, beneficia os réus com sanções mais favoráveis aos seus interesses.
Durante a apresentação das alegações finais, em tribunal, o Ministério Público destacou, por outro lado, que os arguidos deveriam ser apenas condenados pelos crimes de peculato e branqueamento de capitais, tendo em linha de conta que o crime de recebimento indevido de vantagens, de que haviam sido acusados pelo Ministério Público, o juiz da causa não acolheu na pronúncia.
Outrossim , o crime de violação de normas de execução do plano e orçamento, de que foram acusados e pronunciados os réus, nos termos do novo Código Penal angolano (lei posterior), aquele tipo penal relevante foi alterado, tendo-se verificado a adição de um novo elemento constitutivo: saber se Manuel Rabelais e Hilário dos Santos podem ser julgados por alguma das duas leis em causa (lei anterior ou lei posterior).
É preciso que se esclareça que a lei anterior não pode ser aplicada, na medida em que o facto típico aí previsto foi suprimido do rol de infracções. Ou seja: o legislador passou a considerar que a “violação de normas de execução do plano e orçamento” deixou de ser motivo suficiente para justificar a aplicação de uma sanção penal. Nessa medida, verificou-se uma descriminalização do facto previsto na lei anterior.
Consequentemente, a lei posterior também não pode ser aplicada, pois, implicaria o uso retroactivo do novo elemento constitutivo ou nova epígrafe criminal e desta provocaria a aplicação de um elemento típico (criminal) posterior ao facto praticado pelos réus, o que fere gravemente os termos dos princípios aplicados no instituto da eficácia da lei penal no tempo: a legalidade, no sentido de anterioridade (só há penalização caso haja lei que criminalize, antes da prática da fraude), a irretroactividade (a nova lei não tem uso sancionatório para actos praticados antes da sua aprovação) e a excepção da retroactividade (somente diante de uma lei mais benigna).
Note-se que o elemento típico agora em causa constituirá um componente verdadeiramente novo que, de nenhuma forma, se encontrava já previsto no tipo anterior. Nessa medida, os réus não poderiam ser punidos nem pela antiga, nem pela nova lei.
O Ministério Público sustenta, nas suas alegações orais finais, que ficou “suficientemente provado” que os arguidos incorreram nos crimes de peculato e de branqueamento de capitais. “Manuel Rabelais, auxiliado por Hilário Santos, transformou o GRECIMA em casa de câmbios, angariando empresas e pessoas singulares para depositarem kwanzas em troca de moeda estrangeira, vendendo divisas ao câmbio superior” ao que era praticado pelo BNA, sendo o co-arguido, Hilário Gaspar Santos, sublinhou o procurador, o “angariador das empresas” que compravam divisas ao GRECIMA.
O Procurador, Manuel Domingos, sustenta que os arguidos “eram funcionários públicos que, ilegitimamente, apropriaram-se de fundos públicos e, por isso, incorrem em crimes de peculato”.
Quanto aos argumentos de que os réus e as defesas fizeram bandeira, segundo os quais, os primeiros agiam sob segredo de Estado, para o Ministério Público, “não colhe”, pois, o segredo de Estado, salientou o magistrado do MP, “não implica ausência de documentos da instituição” e tão pouco a “transferência de valores em contas de parentes para o pagamento de propinas da universidade”.
Para o procurador junto ao MP no Tribunal Supremo, Manuel Domingos, os réus delapidaram o Estado angolano em mais de 22,9 mil milhões de kwanzas (30,6 milhões de euros), sendo 18,3 mil milhões de kwanzas (24,4 milhões de euros) das divisas recebidas do Banco Nacional de Angola (BNA) e 4,6 mil milhões de kwanzas (6 milhões de euros) recebidos directamente do Orçamento Geral do Estado (OGE).
Para aquilatar o que considera “evidente prática” de branqueamento de capitais, Manuel Domingos sustenta que a “ostentação do arguido Manuel Rabelais, durante o período que compreende os anos 2017 e 2018, fazendo despesas de 429 mil euros só em compras de roupas”. No mesmo diapasão, salientou que “já em 2016, aquele registou um imóvel em seu nome na cidade do Porto, Portugal”.
Assim, o Tribunal Supremo, por alegada prática dos crimes de peculato e branqueamento de capitais, condenou, na segunda-feira, 12 de Abril, Manuel Rabelais, a 14 anos e 6 meses de prisão. Já o seu então assistente administrativo no GRECIMA, para muitos “pau para toda obra”, à disposição de Rabelais, e co-arguido ao processo, foi condenado a 10 anos e 6 meses de reclusão pela alegada prática dos mesmos crimes.
Defesa inconformada
João Gourgel, defensor de Manuel Rabelais, demonstrando fé no recurso e inconformado com a decisão do tribunal de primeira instância, à saída da sessão que deu lugar à leitura da decisão, alegou que tarda que se diga em concreto qual foi o desfalque que o seu constituinte impôs ao Estado angolano. “… e as declarações dos declarantes, nomeadamente, Walter Filipe e Filomena Seita, deixaram suficientemente claro que não houve qualquer lesão patrimonial ou material ao Estado”, crê João Gourgel.
“A reacção é de certa surpresa, não tanto pela pena a que Manuel Rabelais foi condenado, mas pela justificação que o venerando juiz dá, porque o peculato é um crime patrimonial e, até agora, não foi dito, em concreto, qual foi a lesão patrimonial ou material que Manuel Rabelais causou ao Estado, aliás, os declarantes deixaram isso claro”, reitera o advogado.
Ainda no final da leitura do acórdão de condenação do ex-director da RNA e GRECIMA, no Tribunal Supremo, a sua defesa colocou em causa os argumentos do juiz da causa. “disse que ele foi condenado nessa pena, porque o crime de peculato visa proteger a fidelidade e a fé pública dos funcionários públicos… sinceramente, nunca ouvi dizer que o crime de peculato visa proteger a fidelidade ou a fé pública!”.
Em contraponto, João Gourgel o defensor Manuel Rabelais, refuta a acusação do Ministério Público, resumindo que estão consubstanciadas de pretextos “subjectivos e enfermados de enormes contradições”.
Já a defesa de Hilário Gaspar Santos, Belchior Catongo, nega todas as acusações imputadas ao seu constituinte e, em sede das alegações orais, pediu a absolvição do seu cliente, referindo que “nenhuma das acusações atribuídas àquele ficou provada”, nem mesmo o vínculo que o identifica como funcionário público.
De resto, os dois advogados disseram, em tribunal, que os seus constituintes não cometeram crime algum. “Aliás, a nossa defesa foi sempre no sentido de se alcançar a absolvição deles, por falta até de legitimidade do Ministério Público para mover esta acção, porquanto, os bens e dinheiros que passaram pela conta do GRECIMA são dinheiros privados e não públicos”, faz crer João Gourgel.