“AINDA TEMOS JORNALISTAS PEDINTES QUE PASSAM A IMAGEM DE MEDIOCRIDADE”

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Rodrigues Cambala é jornalista há 21 anos, tendo ao longo da sua carreira, passado pelos extintos jornais ‘Actual’, onde deu os primeiros passos, e o ‘O Independente’, bem como colaborou em vários outros e revistas no país. É licenciado em Comunicação Social pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto e especialista em Comunicação Corporativa, frequentando o curso de pós-graduação em Direcção Estratégica e Marketing. Com formação em ‘Reportagem e Escrita de Texto não Ficção’, realizado no Cenjor-Lisboa, é também formador em matéria de Comunicação Corporativa e Jornalismo e prevê, para breve, o lançamento do seu livro, ‘Reportagem’. É com este actual quadro do Jornal de Angola que chegamos à fala para abordar o cenário actual do Jornalismo angolano e conjecturar o futuro.

Por: João Feliciano

O Crime: Que leitura se pode fazer sobre o estado actual da nossa Comunicação Social?

Rodrigues Cambala: Ora, fazendo um recuo ao tempo em que nós fazíamos o Jornalismo, até à altura antes do multipartidarismo, 1992, quando começaram a surgir órgãos de comunicação ou jornais privados, tínhamos um Jornalismo muito centralizado, um Jornalismo assente no comunismo. Mas já com o processo de paz e com ele o multipartidarismo, abriu-se um pouco esse processo e começamos a viver novas formas de fazer comunicação.

Surgem, daí, algumas rádios e jornais privados nesse período. Mas, de lá para cá, começamos a registar novos modelos e novas formas de se fazer Jornalismo. Mas, claro, os colegas daquele período, nessa transição, naturalmente, como qualquer transição, acredito que tiveram alguma dificuldade. Nessa altura, e depois de qualquer processo, achamos que tivemos um período muito bom, isto é, em finais da década de 1990 e princípio da década de 2000.

Nessa altura, em princípios do novo milénio, o Jornalismo angolano já se fazia com algum grau de responsabilidade, maturidade, enfim. Mas depois começou a registar-se, novamente, algumas situações menos boas, em que o jornalismo angolano voltou a entrar em decadência, fruto de grupos comerciais que começaram a adquirir alguns jornais e foram dizimando- este é o termo correcto-, os órgãos de comunicação social, alguns deles muito bons.

Portanto, da década passada para cá, começamos a ter algumas dificuldades no campo jornalístico, desapareceram muitos órgãos de comunicação privados e, fruto das dificuldades financeiras, do facto de alguns terem sido adquiridos por grupos comerciais, que tinham ligações muito fortes com o poder.

Mas, ainda assim, surgiram outros órgãos, maioritariamente, feitos por jovens muito dinâmicos, é claro, alguns deles sem muita experiência, mas era o possível que se poderia fazer. Portanto, até hoje temos três ou quatro jornais físicos, sendo que os demais são digitais, fruto das dificuldades que se vai vivendo no país- não há papéis, não há publicidades, não há créditos, portanto, não há como sobreviver nestas condições. Mais a mais, pelo facto de os jornais privados não serem subsidiados pelo Estado angolano. Daí essa dificuldade.

“Os jornais físicos não vão desaparecer”

O Crime: Essa transformação dos jornais em formato de papel para o digital não terá muito a ver com o advento das novas tecnologias, caindo, assim, num processo automático da própria evolução?  

Rodrigues Cambala: Esse processo seria natural, concordo consigo! Chegaria uma altura em que os jornais deveriam, automaticamente, transferir-se, também, para o mundo digital. Isto é daquelas coisas indizíveis.

Naturalmente, hoje, com este desenvolvimento muito grande das novas tecnologias de comunicação e informação, as pessoas, estando em qualquer ponto, precisam informar-se, precisam comunicar-se. Era normal que os jornais, falando da nossa realidade, também penetrassem na Internet. Aliás, grandes jornais mundiais, como é o caso, por exemplo, do The Independent, uma publicação britânica com uma história muito grande, portanto, deixou de ser impresso para ser única e exclusivamente digital. E há outras grandes publicações internacionais que não deixaram de imprimir, mas que hoje têm um pendor digital muito forte. Portanto, é um processo normal.

O Crime: Desta feita, acredita que os jornais físicos irão desaparecer?

Rodrigues Cambala: Mas, também, como eu costumo dizer, os jornais físicos não vão desaparecer, porque têm uma tradição. Aliás, eu mesmo já encontrei muitos leitores que se sentem mais confortáveis a ler o jornal físico do que o digital. Muitos deles têm ainda, digamos, uma resistência aos meios digitais, mas há maior apetência e até mesmo gozo em ler o jornal em papel do que o digital.

Infelizmente, o que aconteceu aqui, em Angola, não foi este processo normal, natural das coisas; os jornais viram-se forçados a imigrar para a Internet, pois este formato tem menos custos, os donos dos jornais têm menos despesas com o pessoal, em termos de pagamento de salários, contas correntes, enfim. Até porque dá maior jeito para praticar o Jornalismo, porque não precisa ser feito com um número elevado de profissionais e tem o beneplácito de a informação ser difundida com maior rapidez e atingir um número de leitores maior que o formato físico.

Por outro lado, vivemos um tempo em que as pessoas querem o imediatismo, e a informação não fica atrás. A necessidade de as pessoas estarem informadas de imediato obriga que os órgãos virem as baterias para essa nova forma de fazer jornalismo, também. Porque, senão, és ultrapassado, cais no desuso.

A informação tem de ser actualizada minuto a minuto, a cada instante há um dado novo a ser acrescentado na informação, e é por aí que todos os órgãos devem partir.

Mas eu noto que alguns jornais, sobretudo os mais tradicionais, vivam ainda alguma dificuldade em relação a isto, a própria Angop, a única agência de notícias que o país tem, o Jornal de Angola, e essa é uma opinião muito particular, precisam fazer maior investimento nisto. Há quem possa dizer que, nesses órgãos, as notícias também são colocadas minuto a minuto, mas o que eu defendo, o jornal O Crime também entra nessas contas, é que o jornalista, a partir do terreno, tem de ter a capacidade de colocar a notícia ao ar, ele não precisa de ir à redacção para que a notícia seja divulgada. É uma questão do imediato, por isso é que as rádios têm essa vantagem. Há maior facilidade disto acontecer na rádio.

Eu acho que, se as rádios podem, minuto a minuto, colocar a notícia ao ar, as agências de notícias e os jornais, também, têm de ter essa capacidade. A partir do terreno e, hoje os telefones dão-nos essa possibilidade, os repórteres podem e devem colocar as notícias no ar. Em dois ou três parágrafos, mas a notícia tem de fluir.

É necessário evoluirmos por aí, os órgãos têm de fazer um investimento mais do ponto de vista da formação dos seus colaboradores e dos meios, para que isto aconteça. Mas o que notamos é que, para as pessoas terem acesso às notícias, os repórteres têm que ir às redacções, produzir os textos, serem corrigidos e revisados e só depois colocá-los ao ar.

O Crime: Mas esse processo não pode ser perigoso, já que abrirá espaço para que o repórter cometa muitos erros?

Rodrigues Cambala: Eu costumo dizer que os donos das empresas de comunicação contratam os jornalistas a quem incumbem a responsabilidade de dirigir o jornal, e estes, por sua vez, também têm a responsabilidade de recrutar outros profissionais. Mas eu defendo que devem ser recrutados os melhores profissionais, até porque existem no mercado.

Temos muitos bons quadros que estão a sair agora das universidades, jovens com capacidade de exercer um bom trabalho. O que acontece é que ninguém quer correr este risco, sob justificativa de vir a fazer um investimento vão. Mas é preciso dar um treinamento a esses jovens para os dotar de ferramentas necessárias, para que eles possam, rapidamente, entrar no espírito da missão, para as quais foram recrutados.

É possível evitarmos determinados erros, porque temos profissionais capazes de contorná-los. Claro que vamos ter, também, aqueles menos experientes, que estão no início da carreira, mas que podem produzir os textos a partir do terreno, enviar para o profissional sénior que esteja na redacção ou em qualquer outro ponto, que vai olhar para a notícia, dar o tratamento e colocar ao ar.

O Crime: Fazendo um paralelismo entre o tipo de Jornalismo que se praticava antigamente, entre os anos 1990, antes de muitos órgãos serem comprados por grupos comerciais, e o modo como o Jornalismo é exercido hoje, acha que houve alguma quebra do ponto de vista do rigor?

Rodrigues Cambala: Acredito que houve sim. Embora estejamos, ainda hoje, com dificuldades de regular a própria actividade, hoje por hoje, acredito que o debate seria outro, mas, ainda, estamos nesse processo de regularizar o exercício da actividade cá. Infelizmente, parece existir vontade de algumas pessoas em atrasar este processo, e está claro!

É só olharmos para o não funcionamento dos conselhos de redacção, que é um órgão dentro das redacções muito importante, já que têm uma palavra até na indicação de directores do órgão, dos editores, enfim. Estão na discussão daquilo que é a produção do órgão, do ponto de vista da notícia que se vai produzir e outros conteúdos noticiosos. Então, tudo isto nos leva a crer que há vontade de algumas pessoas para que este processo continue atrasado, porque, com uma Lei de Imprensa a vigorar intensamente, muitos dos nossos líderes terão alguma dificuldade.

Realmente perdermos algum rigor, alguma qualidade, e temos de ser honestos e admitirmos isto. Eu leio muitos jornais digitais, e, às vezes, fico chocado com determinadas notícias, porque acho que deveriam ser melhor escritas, deveriam ter cumprido as regras deontológicas, o cruzamento da própria informação, que são regras básicas no Jornalismo.

“O problema do jornalismo em Angola pode estar na formação dos jornalistas”

O Crime: Onde acha que reside o problema?

Rodrigues Cambala: Eu acho que o problema está, um pouco, se não muito, na formação. Porque alguém facilita isto, essas mesmas pessoas que criam bloqueios no funcionamento integral da Lei de Imprensa, interessa-lhes que tenhamos uma imprensa com estas insuficiências, dado que, no final, eles vão dizer que há mediocridade no Jornalismo angolano, sentem gozo nisso.

Recentemente tive uma discussão com um líder sindical que escreveu que os jornalistas dos órgãos públicos eram medíocres. Eu disse-lhe que eu tenho formação igual a de um médico, igual a de um engenheiro.

Fazem isso para que a sociedade afirme que o jornalista angolano é um medíocre.

O Crime: A título de exemplo, o PR angolano, não raras vezes, fala mais à imprensa privada acreditada em Angola, do que aos jornais, rádios ou TVs nacionais! Será este um certificado de incompetência à media angolana?

Rodrigues Cambala: Mesmo o anterior presidente, e se a memória não me atraiçoa, só falou uma vez à imprensa nacional, isso no final da década de 1980. Não é normal.

Embora faça parte do programa do presidente, João Lourenço, conceder entrevista colectiva no princípio de cada ano, achamos que não é suficiente. Mas acredito, piamente, que há pessoas, no círculo do PR, que lhe dizem que os jornalistas angolanos são medíocres, não duvido! Sabe por que isso acontece? Porque nós, os jornalistas, temos culpas nisso! Hoje por hoje, nós, jornalistas, passamos a imagem de escorias. Olha, houve um período, nos EUA, de 1950 e 60, em que os jornalistas eram chamados de bêbados, menos inteligentes, enfim. Nós tivemos essa situação cá, em Angola, nos anos de 1980 e 90, em que éramos rotulados de bêbados. Mas há uma geração que conseguiu combater esta situação. Hoje, já não permitimos que nos atribuem tais nomes, porque não é salutar.

Temos culpa, dizia eu, porque temos jornalistas que, ainda, se deixam cair ao descrédito, jornalistas que se transformaram em pedintes, e estas pessoas têm essa noção, que não valemos nada.

Já vi jornalistas a andarem atrás de fontes a pedirem dinheiro ou alguma outra coisa em troca. Eu já vi jornalistas a fazerem chantagem, estou a falar em jornalista com largos anos de experiência. Isso é muito grave, temos de combater!  E claro, estas pessoas vão aproveitar-se desta situação, deste comportamento de alguns colegas nossos para nos chamarem, a todos, de medíocres, porque depois ficamos reféns de quem nos deu alguma esmola. Isso tem de ser combatido. Temos de olhar para a nossa profissão como nobre.

O Crime: Olhando para o perfil do jornalista angolano, é possível concluir que esta é uma profissão nobre ou há um jugo desigual?

Rodrigues Cambala: Essa situação que acabei de falar, claro, cria este desnível na forma de olhar para o jornalista, temos de ser honestos. Mas a profissão é nobre, aliás, eu tenho dito que o Jornalismo é uma grande profissão, porque, para além de ciência, arte de informar, é das melhores profissões do mundo.

Quando produzimos notícias, quando levamos os factos ao conhecimento do público, informamos com verdade, isenção e imparcialidade, nos sentimos satisfeitos, sentimos, dentro de nós, o dever de ter cumprido uma missão nobre e isso nos dá uma satisfação muito grande. Ademais, a forma como nós, jornalistas, interagimos uns com os outros, a forma como o meu texto, o meu trabalho deve ser visto entre os colegas, isso não acontece em muitas profissões. O que nós fazemos ou produzimos é, antes de mais nada, colocado ao crivo dos colegas de redacção e, ao primeiro minuto, os possíveis erros são vistos e corrigidos, antes mesmo de a matéria ser publicada. Isto não acontece em qualquer profissão, nós temos este privilégio. Mas não é uma nobreza do ponto de vista material, porque, hoje por hoje, as pessoas estão muito materialistas, é do ponto de vista funcional.

O Crime: Com a dissolução de grande parte dos jornais que existiam outrora, por exemplo, a classe também perdeu muitos bons filhos para outras profissões. Acha que o Jornalismo angolano ressentiu-se destas perdas?

Rodrigues Cambala: Evidentemente. Aliás, esta é uma das nobrezas do Jornalismo, ele dá quadros para quase todas as áreas de todos os sectores. Dá bons políticos, bons economistas, bons médicos, bons advogados, enfim. Eu tenho dúvidas que um indivíduo que tenha passado pelo Jornalismo, não seja um bom técnico na área em que ele está, actualmente, enquadrado, porque o Jornalismo te dá esta carga, do ponto de vista do conhecimento. Só a título de exemplo, o primeiro ministro inglês, Boris Johnson, foi jornalista; o antigo vice-primeiro ministro português, Paulo Portas, foi jornalista. É normal que o Jornalismo dê para as outras áreas bons profissionais.

Agora, também é preciso colhermos que muitos abandonaram o exercício da actividade jornalística e optaram por outras actividades mais e melhores rentáveis e, nos últimos tempos, temos vindo a assistir colegas que manifestam essa vontade de abraçar outra actividade. Se conversarmos com, pelo menos, cinco jornalistas, três ou dois hão de manifestar essa vontade de abandonar o Jornalismo.

O Crime: Para além de todo o brio e nobreza associada a ele, o Jornalismo dá alguma garantia de bem-estar social, pelo menos em Angola?

Rodrigues Cambala: Alguns abandonam o Jornalismo por causa do desencanto, pois tinham outra visão, quando saíram das universidades, isso é comum. Aliás, as pessoas, quando estão na academia, têm uma outra visão da coisa, entendem que tudo que elas pensam e escrevem tem de ser publicado.

Essa é uma visão errada que se tem, porque todos os órgãos de Comunicação Social do mundo têm linha editorial. Aliás, se pegares o The New York Times, de Nova Iorque, o Público, de Portugal ou o jornal O País e O Crime, de Angola, verás que têm a mesma linha editorial. Por que que digo que são iguais? Porque têm os três ou quatro elementos semelhantes que são: o rigor, imparcialidade, isenção, respeito às normas de ética e deontologia profissional, tudo. Nenhum tem o contrário destas leis.

E se nos perguntarem se, na Coreia do Norte, existe o direito à informação, sim, existe. Não acredito que exista uma Constituição no mundo em que não exista este direito. Portanto, são estas linhas que norteiam a actividade jornalística, e o aspirante a jornalista começa a trabalhar com todas estas linhas orientadoras na cabeça: rigor, imparcialidade, isenção. Ora, vejamos onde está o problema: os jornais, a rádio e as televisões pertencem a grupos económicos, os órgãos de comunicação não pertencem aos jornalistas, pertencem a estes grupos económicos que, como qualquer grupo, têm interesses em vários outros investimentos. Portanto, basta notarem que há uma informação contra o outro sector que eles investem, a matéria não sai. Por isso, muitas vezes tem havido esse choque entre o patrão e o jornalista.

Aliás, eu tenho estado a dizer que é imprescindível, do ponto de vista da Filosofia da Comunicação, que se estude bem a questão da imparcialidade. Dentro da Sociologia da Comunicação, eu olho para estes elementos como subjectivos. Há uma subjectividade muito grande na imparcialidade e na isenção.

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