Palavra de Honra: Diálogo com a incerteza
Quase duas semanas depois do início da campanha eleitoral, o panorama assusta. Os primeiros resultados inspiram cuidados intensivos. O nível é assustadoramente baixo. Mete medo e desafia o futuro. As esperanças começam a murchar. As luzes parecem estar à beira de fundir. O céu está cinzento. Em terra, ninguém se entende e o clima está tenso. Como diria o outro, “isto parece que vai ficar feio”!…
Gustavo Costa
Depois de terem marinado durante alguns meses à sombra de um desacordo escondido a sete chaves, duas palavras mágicas retiradas esta semana do armário parecem estar a agitar as águas eleitorais. Ameaçando provocar um novo naufrágio, estas palavras designam-se por “Pacto de regime”.
Saídas da clandestinidade parecem estar a queimar os lábios dos dois principais animadores da paródia: MPLA e UNITA. Um conceito que, afinal, parece ser avesso à cultura de ambos.
Onde, por isso, esperávamos ver circular novas ideias para o futuro governativo do nosso País, começamos a assistir ao desfile de arrufos extremistas.
Onde esperávamos ver prevalecer o bom senso, começamos a assistir ao desfile de acusações e contra-acusações envoltas em meias verdades amplificadas por ambos os lados por uma gritaria política absolutamente insana para a democracia.
É claro que não se espera que MPLA e UNITA andem aos beijos, mas também ninguém quer que, na marcha para a Cidade Alta, façam do debate eleitoral uma tourada verbal. Ninguém quer que voltem a resvalar com a viatura pela ribanceira abaixo.
Deles se exige que tenham, por isso, uma condução avisada e que saibam aceitar pacificamente as ultrapassagens feitas ao abrigo das leis de trânsito. Deles se exige que não façam ultrapassagens à direita.
Deles se espera que sejam bons vencedores e exemplares vencidos. Deles se espera que não alimentem a campanha eleitoral com novos fantasmas. Deles se espera que se comportem como partidos adultos.
Deles se espera que não transformem os debates em duelos. Deles se espera que tendo bem presente o passado, não se esqueçam que o futuro não se faz conduzindo com os olhos no retrovisor. Deles se espera que tenham os pés bem assentes na terra.
Deles se espera que não tomem os cidadãos por tolos nem tentem iludi-los com promessas sem chão.
Deles se espera que saibam assumir as suas responsabilidades sem perderem tempo com questões de semântica.
Logo, se o MPLA e a UNITA como as principais forças políticas subscritoras dos acordos que conduziram ao estabelecimento da paz decidiram conversar antes das eleições para encontrar uma plataforma de entendimento que salvaguarde a preservação da estabilidade do País, um e outro só podem ser apoiados por toda a sociedade.
Logo, para a população pouco importa se o estabelecimento da estabilidade vai assentar numa plataforma de entendimento entre o MPLA e a UNITA que se chama “Pacto de regime” ou convénio para uns ou se designa acordo ou tratado para outros.
O que importa para a população é que nem um nem outro caiam na tentação de querer transformar as conversas mantidas em regime de clandestinidade em arma de arremesso política geradora de uma verdadeira combustão eleitoral.
Tendo havido uma conversa a dois, sem a presença de testemunhas e com a palavra de um a querer sobrepor-se à do outro, a razão da força tenderá a impor-se sempre à força da razão.
Sem testemunhas, no plano verbal, o tempo não pode, no entanto, dar guarida ao desfile de balas incendiárias que estão a ser disparadas pelos dois lados.O tempo impõe que os ânimos arrefeçam e que MPLA e UNITA entendam que o mais importante agora é não deixarem cair as sementes desta iniciativa. Percebam que é a conversar que os homens se entendem.
Percebam que para a população, antes de serem da UNITA ou do MPLA, os principais dirigentes destes dois partidos devem comportar-se em primeiro lugar como militantes da democracia.
Dir-me-ão que já o fazem. A realidade, porém, tem-se encarregado de os desmentir. Sê-lo-ão em teoria, mas, na prática, falta-lhes começarem a sê-lo de alma e coração.
Falta-lhes estarem convictamente entregues à causa da causa maior da nossa democracia nesta fase: a estabilidade. Falta-lhes perceberem que estão a repelar-se em torno de casos quando deles o que os cidadãos esperam é que saibam lutar por causas.
Se esta conquista, em nome dos superiores interesses de Angola, tiver que passar por um “Pacto de regime”, então que venha o “Pacto de regime”.
Não sendo um fantasma, perante o crescimento da actual crise de confiança existente entre o MPLA e a UNITA, um “Pacto de regime” constitui uma apólice de seguro eficaz para a realização pacífica das eleições.
Porque o “Pacto de regime” já provou também ser um seguro de vida preventivo para a estabilidade governativa de muitos países saídos de eleições cujos resultados, ao terem imposto arranjos, nem por isso subverteram os valores da democracia.
Porque, mesmo à luz de vela, dá para ver que nem o MPLA está preparado para não ganhar, nem a UNITA está preparada para voltar a perder. Porque movidos por raivoso sentimento, um e outro parecem tentados a continuar a não olhar a meios para atingirem os fins.
Precisamos, pois, de travar essa overdose. Mas, como fazê-lo? Subscrevendo um “Pacto de regime”. Dir-se-á que, mal (in)formados sobre a natureza e o alcance de um “Pacto de regime”, perfilar-se-ão muitas resistências à sua adesão por vários segmentos de um e outro partido. Dir-se-á também que agora é tarde.
Para preservar a estabilidade do País, nunca é tarde. Para garantir a ordem constitucional, nunca é tarde. Para solidificar o aprofundamento do processo democrático, nunca é tarde. Para desmistificar alguns tabus artificialmente criados à sua volta, também nunca é tarde.
Não podemos também deixar de ter em conta que, no final das eleições, não haverá empates. E que o maior desejo dos angolanos é que do resultado do pleito do dia 24 de Agosto saia um Governo forte.
Ora, um Governo forte precisa de uma oposição igualmente forte. Mas, um Governo forte só consegue ver reconhecida a sua legitimidade e autoridade se o processo eleitoral não for ferido de desconfiança ou conspurcado com perturbações que venham a pôr em causa a sua transparência e credibilidade.
Um Governo eleito nestas condições torna-se rapidamente alvo de uma vaga de contestação que pode desembocar em instabilidade. Um Governo eleito nestas condições, mesmo que tome posse, sujeita-se a ver o País cair numa situação de ingovernabilidade perante uma vaga incontrolável de greves, de protestos sociais e de outros tipos de manifestações.
Um Governo eleito nestas condições rapidamente, em sentido oposto, acabará por ceder a tentação de apostar num sistema autocrático e absolutista, que, sendo avesso ao exercício pleno da democracia, tenderá a reproduzir a instabilidade e a transformá-la em convulsão.
Ora, depois de termos sofrido tantas agruras por causa desta praga, instabilidade e intolerância, mesmo sem guerra, é tudo o que menos poderíamos desejar voltar a ver abater-se sobre o nosso País.
Em certas circunstâncias como as nossas, mesmo sabendo que a democracia é um regime de dissensão, o recurso a “Pacto de regime”, longe de constituir um bicho papão, costuma ser a solução de muitos dos seus problemas.
Foi assim no processo que conduziu à redemocratização do Chile e em Portugal viveu-se uma experiência igualmente saudável quando os empresários, num determinado período, propuseram o estabelecimento de um “Pacto de regime” entre os dois maiores partidos políticos para viabilizar a aprovação do orçamento.
Na Alemanha, assistiu-se também à assinatura de um acordo entre o SPD, os Verdes e os Liberais para a protecção do clima com a adopção de uma lei, sem falar em tratados militares como a OTAN ou o Pacto de Varsóvia, que vigorava até à queda do Muro de Berlim no âmbito dos países da chamada “Cortina de Ferro”.
No nosso caso, um “Pacto de regime”, antes de ser implementado, precisa, no entanto, de ser interiorizado na sua real dimensão pelos principais actores partidários.
Desde logo, convém por isso sinalizar que o “Pacto de regime” que é defendido hoje por vastos sectores da sociedade constitui, porventura, o maior teste à capacidade de o MPLA e a UNITA saírem democraticamente da sua tradicional caixa.
Um “Pacto de regime” não diminui a qualidade da vitória de quem vier a ganhar as eleições. Um “Pacto de regime” não obriga a oposição a mostrar as cuecas ao Governo nem diminui o impacto e a legitimidade das suas críticas. Isso também funciona para o Governo.
Um “Pacto de regime” também não reduz a acutilância da oposição na formulação e apresentação de soluções que sirvam de alternativa às políticas governativas.
Um “Pacto de regime” em certas circunstâncias como a nossa representa a expressão do amadurecimento da democracia.
MPLA e UNITA podem estar e estão divididos no caminho a seguir, mas nada os impede de estar unidos numa solução de compromisso em busca do bem comum.
Hoje, se há terreno em que o MPLA e a UNITA têm de perceber que estão condenados a entender-se, este é um deles. Se há terreno em que MPLA e UNITA estão condenados a fazer pontes, este é um deles.
Afastadas as tentações extremistas e absolutistas, MPLA e UNITA têm, pois, de aprender a perceber que, em política, muitas vezes, no meio está a virtude.
MPLA e UNITA têm, pois, de aprender que, em política, muitas vezes, um passo atrás significa um salto de canguru. Se a estabilidade pós-eleitoral precisa desse passo, e se esta parece ser a única forma de não continuarmos a dialogar com a incerteza, então vamos ao “Pacto de regime”!