Será Manuel Vicente o próximo a cair?
A oportunidade existe e está a uma distância curta. A seguir às eleições gerais, agendadas para agosto, o procurador-geral da República de Angola terá de resolver um dos dossiês mais sensíveis do regime desde que José Eduardo dos Santos, Zedu, abandonou o poder: o que fazer com Manuel Vicente? Quando deixou de ser vice-presidente da República, em 2017, Vicente ganhou um período de cinco anos de imunidade, durante o qual não pode ser acusado nem levado a julgamento. Essa imunidade termina em setembro.
Fonte: Jornal Expresso
Nos últimos anos, o procurador-geral Hélder Pitta Grós admitiu agir contra Manuel Vicente, mas vai ser preciso esperar para ver se isso irá realmente acontecer, tendo em conta a persistente falta de independência do poder judicial, apontada por organizações internacionais como continuando a ser um dos pontos fracos de Angola, e quando muitas vozes críticas em Luanda indicam haver uma relação próxima entre o Presidente João Lourenço e o antigo número dois de Zedu.
Manuel Vicente tem assuntos pendentes com a Justiça — e o mais mediático deles tem a ver com Portugal. Em Lisboa, foi acusado de corrupção ativa por pagar €763 mil a um magistrado da equipa de elite do Ministério Público português para arquivar investigações em curso contra ele, mas em maio de 2018 o Tribunal da Relação optou por enviar para Luanda a parte da acusação relativa ao ex-vice-presidente. Meio ano depois, o procurador Orlando Figueira foi condenado por corrupção a seis anos e oito meses de prisão, com a pena a ser confirmada em novembro de 2021 pela Relação, mas o alegado corruptor continua por ser julgado.
A decisão da Procuradoria-Geral da República angolana sobre este processo, e sobre outros casos em que Vicente é também visado, vai servir para medir o pulso à campanha anticorrupção que Lourenço assumiu como uma das prioridades da sua governação.
Em qualquer dos cenários, o Presidente estará numa posição difícil, porque a decisão judicial tomada será sempre vista como sua. O que significa que ou passa a ter Manuel Vicente como inimigo ou arrisca-se a ter protestos de novo na rua.
No relatório sobre Angola produzido para o Índice de Transformação Bertelsmann (BTI) de 2022, uma iniciativa da Bertelsmann Stiftung, a fundação alemã dona do conglomerado Bertelsmann (onde se incluem o grupo de televisão RTL e a Penguin Random House), o diagnóstico sobre a Justiça angolana é cru: “Embora exista um Supremo Tribunal, um Tribunal Constitucional, um procurador-geral e um provedor de Justiça, juízes e magistrados são na sua esmagadora maioria nomeados de acordo com a lealdade política e estão sujeitos a influência política. As investigações são rotineiramente abertas ou encerradas de acordo com ‘orientações superiores’ (ou seja, diretivas do presidente)”.
A equipa do BTI reconhece que a luta contra a corrupção tem sido uma das prioridades de João Lourenço, mas sublinha que o sucesso desse combate está assente no facto de terem sido investigadas e acusadas algumas figuras ligadas a José Eduardo dos Santos — estando, à cabeça, os seus filhos Isabel dos Santos e José Filomeno dos Santos. “Houve indicações ao longo do período em análise [de fevereiro de 2019 a janeiro de 2021] de que se tratou de uma luta muito seletiva, e que alguns interesses pareceram intocados”, diz o relatório.
A FILHA E O CHEFE DE GABINETE
Entre os exemplos notórios dessa dupla face da justiça, sinalizados pelo BTI, está a nomeação da filha do presidente, Cristina Dias Lourenço, para administradora na bolsa de valores angolana, a BODIVA, em agosto de 2020, sem isso ter levado à abertura de um inquérito, e a manutenção de Edeltrudes Costa como o seu chefe de gabinete, apesar do escândalo em que se viu envolvido.
Edeltrudes Costa foi exposto pelo Expresso em fevereiro de 2020, durante o Luanda Leaks, por causa de um depósito de 17,6 milhões de dólares que recebeu numa conta do BAI (Banco Angolano de Investimentos) em julho de 2013, quando era chefe da Casa Civil de José Eduardo dos Santos.
Documentos a que o jornal teve acesso na altura revelaram como o atual chefe de gabinete de Lourenço acumulou mais de 20 milhões de euros no banco. Parte da fortuna serviu para comprar uma moradia de luxo por 2,5 milhões de euros na Quinta da Marinha e outra casa na Quinta da Beloura, em Portugal, estando os imóveis em nome da atual ex-mulher, Ariete Faria. A investigação do Expresso mostrou ainda como uma empresa de Luanda controlada por si, a EMFC, ganhou vários contratos públicos, incluindo um de €9 milhões para fornecer equipamentos para as eleições de 2017.
“Embora o procurador-geral tenha aberto uma investigação sobre este último caso, Edeltrudes Costa permaneceu em funções, levantando sérias questões sobre a capacidade do procurador-geral para o investigar”, resume o relatório do BTI. Sem que sejam perseguidos judicialmente os beneficiários da corrupção associados ao poder vigente, as mudanças serão muito limitadas.
A Transparência Internacional tem reconhecido, ainda assim, o esforço feito pelo Governo de Lourenço. O Índice da Perceção da Corrupção de 2021 colocou Angola na 136ª pior posição do mundo (estava na 163ª em 2015), com 29 pontos, numa evolução positiva de sete pontos desde 2012. Mas trata-se de perceções.
“As eleições de 2017 e a deposição política de José Eduardo dos Santos que se seguiu representaram um marco na história de Angola”, reconhece Karina Carvalho, diretora-executiva da Transparência Internacional em Portugal. “Não porque o mandato de João Lourenço tenha conseguido romper com a captura do Estado, mas porque desde então ficou clarividente o modelo de governança do ainda todo-poderoso MPLA, o partido no poder, que prossegue em larga medida alicerçado no nepotismo e favoritismo, no enfraquecimento das instituições, na ausência da separação dos poderes democráticos, e no saque do património e das riquezas de Angola.”
Para Karina Carvalho, “o regime cleptocrático instituído por José Eduardo dos Santos não sucumbiu sob a liderança de João Lourenço: adaptou-se à sua nova condição de visibilidade, e reinventou-se detrás da agenda anticorrupção do Presidente”.
Uma opinião partilhada por Manuel Dias dos Santos, sociólogo e fundador da Plataforma de Reflexão Angola. “Sendo um processo estrutural, é uma verdadeira ilusão acreditar no fim da cleptocracia em Angola. E muito menos pensar que essa cleptocracia diminuiu quando grande parte da contratação pública é feita por ajuste direto, violando flagrantemente a lei da probidade.” Dias dos Santos lamenta que a maioria “dos beneficiários de recursos públicos da era de José Eduardo dos Santos continue a gozar de total impunidade”.
O ESPECTRO DA SONANGOL
Um das condenações mais recentes aconteceu em abril. Carlos de São Vicente foi sentenciado a nove anos de prisão e a pagar uma indemnização de 4,5 mil milhões de dólares ao Estado, por crimes de peculato — ou seja, apropriação de bens públicos —, fraude fiscal e lavagem de dinheiro. O tribunal deu como provado que São Vicente desviou mais de 900 milhões de dólares da AAA, uma seguradora detida pela petrolífera estatal Sonangol, de que foi presidente.
Entre 2000 e 2016, Carlos São Vicente acumulou o cargo de diretor de gestão de riscos da Sonangol com a função de presidente da AAA. Uma boa parte destes factos coincide com o tempo em que Manuel Vicente presidiu à Sonangol, entre 1999 e 2012, durante o boom económico de Angola e a expansão da petrolífera angolana a todos os sectores de atividade, incluindo as telecomunicações, a aviação e a banca.
No despacho de acusação do Ministério Público angolano contra São Vicente, citado pela agência Lusa num artigo de março de 2021, o antigo presidente da Sonangol foi descrito como o parceiro com quem o arguido combinou “um plano de apropriação ilícita de rendimentos e lucros, que viriam a ser produzidos com a implementação do sistema de seguros e resseguros no sector de exploração petrolífera, com vista a evasão de divisas do país e ao enriquecimento ilícito”.
O papel do ex-número dois de Zedu, de acordo com essa acusação, foi determinante no esquema de desvio: “Foi assim, que com as cedências de ações de valores avultados ‘presenteadas’ pelo declarante Manuel Vicente, sem que autorização tivesse da autoridade competente e, aproveitando-se da sua qualidade de PCA da Sonangol EP, permitiu a redução drástica das ações detidas pela Sonangol EP na AAA Seguros SA, de 100% para 10% em benefício do arguido, que se tornou, deste modo, detentor maioritário de 87,89% do capital.”
Apesar de estas informações serem públicas, Manuel Vicente tem conseguido escapar às listas negras internacionais. Em dezembro de 2021, os Estados Unidos anunciaram a instauração de sanções contra Isabel dos Santos, no decurso do Luanda Leaks, e contra os generais Leopoldino Fragoso do Nascimento (Dino) e Manuel Hélder Vieira Dias Júnior (Kopelipa), mas deixaram-no de lado, apesar de ter formado com estes dois militares o que o jornalista Rafael Marques chamou “triunvirato da economia política de Angola”.
Ainda esta quarta-feira os angolanos foram surpreendidos com um despacho de acusação da PGR contra Kopelipa e Dino, por crimes relacionados com um esquema de desvio de dinheiro da Sonangol em que, mais uma vez, é mencionado Manuel Vicente. Se o entendimento da PGR for de proceder judicialmente contra Vicente por crimes cometidos quando ele estava à frente da petrolífera, então a lista de casos será longa. Não só porque ele passará a ser um alvo, mas pelos ajustes de contas que isso deverá trazer atrás.