RÉU NÃO CONVENCE TRIBUNAL DE QUE MATOU A MULHER POR TRAIÇÃO E PEGA 20 ANOS
O Tribunal da Comarca de Luanda, 9.ª Secção, versada aos crimes de violência doméstica, diz não entrar na “cantilena” do réu e nem perceber que intenção o terá movido a matar a própria mulher, com recurso a uma catana e correia de carro.
Liberato Furtado
Da juíza da causa, Djoline Bragança, ouvimos que o réu e a vítima, Ângela Feca Caiumbuca, mantinham uma relação de namoro que já durava mais de oito anos e, no início do ano transacto, passaram a viver juntos.
Por corresponder ao momento da quarentena, Neves Benjamim convida o seu irmão, Walter Eliato José, para com eles passar, na sua casa, aquele período, sendo que no dia 21 do mesmo mês, por volta das 15 horas, o réu, o seu irmão e a vítima foram fazer compras de bens alimentares.
De regresso, o réu convidou o irmão para saírem, com o fim de beberem cerveja, enquanto a mulher fazia o jantar. No entanto, aquele se negou, preferindo ficar em casa a assistir televisão.
O réu chegou à casa por volta das 19 horas e orquestrou uma confusão, usando de agressão física contra a mulher, ou seja, começou por desferir duas bofetadas no seu rosto. Walter, o irmão do réu, tenta apaziguar a situação e a vítima aproveita, correndo para o seu quarto, tranca a porta e coloca-se a chorar.
De forma habilidosa e bruta, o réu começou a pontapear a porta e a pedir que aquela abrisse, sob pena de a expulsar de casa. Em reacção, aquela obedeceu e abriu. No ápice, o réu retoma a agressão.
Aos gritos, a vítima pediu socorro. Walter Eliato José, ao tentar socorrê-la, vê-se impedido pelo réu, que o segurou pelos colarinhos e o mandou embora de sua casa. No retorno às agressões, o réu foi mais violento e cruel, passando a usar uma catana contra todo o corpo da vítima.
Face o adiantar da hora, Walter Eliato José foi acolhido pelo vizinho do réu, Manuel Hélio Domingos, que, logo de seguida, se dirigiu à casa do réu, onde, ao vê-lo em posse de uma catana a agredir a própria mulher, interveio, recebendo a catana, e aconselhou a parar, retirando-se, de seguida.
Depois da saída daquele, o réu retoma às agressões contra a mulher, agora usando uma correia de carro, que desferiu três vezes nas costas daquela e, por último, empurrou-a, tendo a mesma batido com a cabeça na parede e caído ao chã. Isto aconteceu por volta das 23 horas.
A seguir, os declarantes, Walter Eliato José e Manuel Hélio Domingos, foram surpreendidos pelo réu a pedir que o ajudassem a levar a vítima ao Hospital Geral de Luanda, tendo o seu irmão ido com ele. No entanto, Ângela Caiumbuca acabou por falecer naquela unidade sanitária, em resultado das agressões.
Réu assume o crime, porém…
O réu foi acusado pela prática do crime de violência doméstica, na vertente física, que remete ao crime de homicídio qualificado, com uma moldura penal abstracta que vai de 20 a 24 anos de prisão.
Neves Benjamim, mais conhecido por Toy, ouvido em tribunal, deu o dito pelo não dito, ou seja, negou tudo o que contou em sede da instrução preparatória no Serviço de Investigação Criminal (SIC). Insistiu na versão de ter encontrado a mulher e o seu irmão (cunhado daquela) em pleno coito e disse, ainda, que deu dois tabefes e um empurrão que levou a vítima a bater com a cabeça em algo que a teria feito perder aos sentidos e, consequentemente, a vida.
Como se pode concluir, o réu negou ter usado a catana e a correia de carro para agredir a vítima, como reza a acusação e a pronúncia, acrescendo que o flagrante só foi possível, porque a porta não estava trancada, apenas amparada por uma corda que, ao ser retirada, não despertou aqueles que, supostamente, se encontravam em perficiente acto sexual.
Justificou que só contou a versão que consta dos autos por inerência do momento de instabilidade e de sentimento de culpa que o invadiu, agregado ao facto de, na ocasião, ter sido acompanhado por um advogado.
O tribunal, antes da pergunta, fez lembrar que não faz sua apologia o incentivo à violência ou revanche, porém, o intrigava o facto de o réu não ter tido qualquer reacção física ou de ódio contra o seu irmão, sob o qual pesa, também, a apregoada traição, já que é comum, e a experiência de vida assim o diz, que em momentos análogos acontece.
Essa situação gerou contenda entre o advogado, o magistrado do Ministério Público e a juíza, tendo esta última, no final, com a ponderação que se exige, alertado que o tribunal começava a entender o porquê do advogado do réu, em questões prévias, no início da sessão, ter solicitado que se dispensasse o irmão do réu como declarante.
Irmão do réu não hesita, mas vizinho mostra-se confuso
A seguir, foi chamado Walter Eliato José, que desmentiu a versão do seu ente, contando que quem abriu a porta para aquele entrar foi ele (Walter) e que nunca esteve em causa um flagrante com sexo à mistura e muito menos com ele em causa.
O declarante surpreendeu o tribunal ao dizer que, em casa, em momento algum, o seu irmão evocou tal pretexto, mas reconheceu que em duas ocasiões o fez. A primeira foi no hospital onde foi levada a mulher, no momento em que foi interpelado pela Polícia local. Em consequência, o declarante, incrédulo, acabou algemado. Acto contínuo, o réu se terá tocado e retirou o que imputou ao irmão, dizendo à Polícia que nada tinha a ver com o caso, só assim Walter se viu livre das algemas.
Na segunda vez, segundo Walter, o irmão o fez já na mira da instrução processual pelo SIC.
Em suma, o declarante disse ao tribunal que o seu irmão foi movido por fúria repentina, depois de se aperceber que o jantar tardava em estar pronto. De qualquer modo, justificou que a demora se deveu ao facto de a cunhada estar apenas a usar a boca eléctrica do fogão, por não terem a botija com o respectivo gás butano.
Manuel Hélio Domingos, o vizinho que confirmou ter recebido a catana da mão do réu, tentou alterar o curso da compreensão do seu depoimento antes concedido ao SIC, mas não terá logrado os seus intentos, de acordo o tribunal, que o chamou à razão e descartou qualquer veleidade.
Quando se esperava que aquele declarante fosse o fiel da balança, o “cara” que diria se, de facto, houve flagrante em traição, com cópula envolvendo os cunhados, não levou os temperos que se augurava, pois não soube dizer ou confirmar a propalada acusação.
Ministério Público pede 20 anos de prisão
O magistrado do Ministério Público, António Verdade Linombe, em alegações orais, advogou que as razões que levaram ao homicídio não são aquelas evocadas pelo réu e, como tal, encontrou, de sobra, motivos para solicitar ao tribunal uma condenação por vinte anos de prisão.
“Por insatisfação de a vítima não ter feito o jantar a tempo e hora, foi agredida de forma impiedosa até à morte. O Ministério Público, presente nessa audiência de julgamento, tem a convicção e certeza que a conexão subjectiva que se imputa ao réu está bem assente. Não temos uma pretensão tão-somente punitiva, ou seja, inclinados a fazer com que o réu arque com a culpa ou responsabilidade penal, mas estamos a avocar a consequência legal que decorre da sua conduta. Por outras palavras, se houvesse elementos bastantes que nos dissessem que o réu não cometeu o crime, di-lo-íamos aqui”, referiu.
Adiante, disse mais “e não se trata de um homicídio preterintencional (a exemplo, é aquele em que um sujeito pretendia dar apenas um soco, mas, por algum motivo alheio a sua vontade, o soco acaba matando o agredido), porque o réu soube, viu a intensidade da agressão que foi imprimindo contra a vítima, que gritava para que parasse. Porém, o réu continuou a agredir e só parou quando a vítima caiu e ficou inanimada no chão”.
“Meritíssima juíza, à instância do Ministério Público, perante este caso, nada mais obriga, a luz da legislação penal, senão pedir que o réu seja devidamente condenado e, atendendo que a penalidade prevista vai de 20 a 24 anos, nós pedimos que, pelo menos, ela seja de 20 anos, porque, na verdade, os crimes de violência doméstica na nossa sociedade têm vindo a evoluir e, como tal, é preciso que se tome medidas assertivas e exemplares, para que a prevenção geral seja efectiva.
Defesa constrói história com pau de dois gumes
Menezes Madureira, o advogado do réu, em alegações orais, refuta os argumentos do Ministério Público, dizendo que o crime em causa se deveu ao flagrante nos termos reportado pelo réu.
“Havia necessidade de uma acareação, talvez produzíssemos melhores provas, mas não houve acareação, nem reconstituição. Nesse caso, meritíssima, por insuficiência de provas, não se pode aferir que se trata de um crime de homicídio qualificado. Pode-se, sim, arrogar o crime preterintencional, pois, no caso em concrecto, abundam elementos do crime preterintencional, pelo facto de o réu ter encontrado a sua mulher em uma situação vexatória, pelo que, querendo causar-lhe algum mal, agrediu-a fisicamente. Porém, desta agressão, provoca involuntariamente, a sua morte. Assim o é que, com o seu desfalecimento, tentou socorrer a vítima, levando-a ao hospital, na ânsia de evitar um mal maior”.
Tribunal diz que houve intenção de matar
“…O réu se encontrava num nível de descontrolo tal que perdeu a destreza daquilo que é o certo ou errado e de quais os seus limites para com a sua esposa. A questão que se coloca é a seguinte: essa negligência ou falta de destreza se enquadra nos argumentos do mandatário da defesa, quando pretendeu fazer crer ao tribunal que as respectivas agressões praticadas pelo réu não foram com a intenção de matar e que foram para além daquilo que esperava ser o resultado morte, pois não havia tal intenção?”, questionou, retoricamente, a juíza.
Em resposta, ouviu-se “o tribunal não acolhe esse argumento, pois não ficou convencido que, pelos factos provados, pela quantidade de actos gradativos nas acções de agressões físicas, não houvesse consciência da parte do réu de que tais actos levariam à morte da vítima”.
Na sequência, teceu: “vejamos: no acto de interrogatório, aquando da instrução, o réu confessa ter usado a correia de carro. Após a leitura desse interrogatório em audiência de julgamento, o réu diz que confirma na íntegra, recuando nas suas respostas, quando se apercebe que a correia de carro corresponde a um objecto contundente. Ora, se não foi assim, como se justifica o auto-de-exame de cadáver e de autópsia, bem como relatório médico, cujos resultados foram descritos nos factos provados…?!”.
Dirigindo-se ao advogado, expressou “pior, num dos seus argumentos, o ilustre mandatário da defesa refere que há insuficiência de provas, onde grande parte delas são documentais. Quid iuris (que solução em Direito), se, em termos de valor probatório, a prova documental tem valor de prova plena, só podendo ser afastada se se provar que o documento é falso? Repare que o auto-de-exame de cadáver e da autópsia, bem como o relatório médico-legal são provas documentais e, ao mesmo tempo, periciais, pois, tais documentos foram elaborados por peritos. Portanto, não vai este tribunal enquadrar o comportamento do réu na prática de um crime involuntário”.
Quanto ao crime de homicídio qualificado, o tribunal verificou como seus pressupostos “primeiramente, a existência de alguém que pratica um crime de forma voluntária, portanto, com intenção de matar, acrescendo nessa intenção, outras circunstâncias, no caso em concreto, o emprego de tortura e actos de crueldade, para aumentar o sofrimento da vítima. Subsumindo os factos provados ao Direito, ficou provado que o réu matou a sua esposa com intenção, porquanto, é de conhecimento notório que uma catana e uma correia de carro, ao serem usados nos termos dos factos provados, não podem ser apenas para agredir fisicamente…”.
Diante do produzido em julgamento, em critérios partilhados com o Ministério Público, o tribunal encontrou motivos bastantes para condenar o réu, Neves Benjamim, a 20 anos de prisão.
A juíza da causa, Djoline Bragança, fundamentou que, não obstante o réu e o seu vizinho, como declarante, tentarem ludibriar o tribunal, as provas documentais e periciais foram conclusivas, assim como o produzido em julgamento, com perguntas do tribunal com o objectivo de encontrar nexo causal ou não e respostas contraditórias daqueles.
Djoline Bragança salientou que a falta de arrependimento e as inúmeras circunstâncias agravantes deram subsídios de peso para consolidar o juízo final. “Pelo exposto, os juízes deste tribunal decidem, em nome do povo, dar como procedente a douta acusação deduzida contra o réu, porque provada, e, em consequência disso, condenar o réu, Neves Benjamim, nos seguintes termos: à pena de prisão maior de 20 anos; ao pagamento de AKZ 100.000,00 (cem mil kwanzas) de taxa de justiça e ao pagamento de indemnização, no valor de 2.000.000,00 (dois milhões de kwanzas) à família da vítima”.