Documento da CNE revela como os resultados das eleições de 2017 foram adulterados

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O facto remonta a 2017 e foi denunciado logo após a divulgação dos primeiros resultados provisórios relativos às eleições gerais de 23 de Agosto, quando seis comissários nacionais convocaram a imprensa para revelar o total desconhecimento sobre a origem dos resultados anunciados pela então porta-voz da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) Júlia Ferreira.

Nok Nogueira

Fonte: IstoeNoticia

Volvidos quatro anos, eis que chega à redacção deste jornal um “expediente interno” (ver documento aqui: CNE TOP SECRET) da CNE, do qual são subscritores sete comissários nacionais, contendo o relato dos factos que teriam ocorrido entre os dias 23 de Agosto (data de realização das eleições gerais de 2017) e 8 de Novembro (altura em que o referido expediente deu entrada no Plenário da Comissão Nacional Eleitoral).

“Para se compreender o alcance do conteúdo do documento dos comissários, deve-se prestar atenção àquilo que o MPLA fez constar na sua proposta sobre o apuramento dos resultados eleitorais. É uma clara colação do que aconteceu em 2017 e, para que não pareça ser uma mudança radical do que ocorreu em 2017 ou mesmo um recuo, foi proposto o mesmo modelo — ou seja, modelo entre aspas — de apuramento dos resultados que foi denunciado pelos comissários”

No documento, os signatários, constituindo mais de um terço dos membros do Plenário da Comissão Nacional Eleitoral em efectividade de funções, solicitam a realização de uma reunião extraordinária, com a finalidade de “levarem” o órgão colegial a reconsiderar a deliberação tomada na 37.ª Reunião Extraordinária, realizada a 21 de Setembro de 2017, que decidiu mandar instaurar processos disciplinares contra alguns dos seus membros, isto é, contra os comissários que haviam denunciado à imprensa a “origem duvidosa” dos resultados eleitorais, nos dia 24 de Agosto e 6 de Setembro, respectivamente.

Sob alegação de que teriam assumido “uma conduta desviante” dos princípios reitores do órgão eleitoral, a CNE instaurou um inquérito para analisar o comportamento de alguns comissários nacionais e provinciais. Neste caso, tratou-se do segundo, já que, em Dezembro de 2016, um primeiro resultou na aplicação de uma censura registada a seis comissários, por estes terem enviado ao Parlamento uma “petição para a resolução das dúvidas e omissões referentes à Lei do Registo Eleitoral Oficioso”, fazendo “uso indevido da logomarca da CNE”.

Entretanto, o !STO É NOTÍCIA sabe agora, por intermédio de uma fonte ligada ao órgão eleitoral, as razões que levaram a que o resultado do segundo inquérito, ao contrário do primeiro, não fosse tornado público e nem os comissários nacionais punidos. A razão, segundo contou a fonte, tem que ver com o conteúdo do “expediente interno” dirigido ao Plenário da CNE, que, de forma implícita, acabou por considerar o caso “um não assunto”, não tendo sido por isso aplicada qualquer sanção aos “infractores”, tal como ocorrido em 2016.

Em causa, descreve a fonte deste jornal, esteve uma observação feita na nota conclusiva do documento enviado ao Plenário pelos comissários nacionais, na qual deixavam “um sério aviso” ao órgão colegial sobre as consequências públicas, caso não fosse atendida a solicitação de reconsiderar a decisão de mandar instaurar o inquérito contra os membros daquele colégio, na sequência da divulgação dos resultados eleitorais provisórios.

Subscrita pelos comissários nacionais Abílio Fernandes Costa, Maria Marcelina Lucanda Pascoal, Miguel Francisco, Maria Chincunga, Cláudio Henriques Silva, Isaías Chitombi e Jorge Manuel Mussonguela, o documento, a cujo conteúdo este jornal teve acesso, é uma narrativa justificativa que visou contrapor a medida tomada pelo Plenário da Comissão Nacional Eleitoral, em face das declarações de alguns dos seus membros.

Teria sido este aviso dos comissários o motivo bastante para o “recuo estratégico” feito pelo Plenário da CNE, indica a fonte do !STO É NOTÍCIA, que começa por se referir a uma alegada relação de causa e efeitos existente entre o documento dos comissários nacionais e a proposta ora avançada pelo Grupo Parlamentar do MPLA, sobretudo no que ao apuramento dos resultados eleitorais diz respeito.

“Para se compreender o alcance do conteúdo do documento dos comissários, deve-se prestar atenção àquilo que o MPLA fez constar na sua proposta sobre o apuramento dos resultados eleitorais. É uma clara colação do que aconteceu em 2017 e, para que não pareça ser uma mudança radical do que ocorreu em 2017 ou mesmo um recuo, foi proposto o mesmo modelo — ou seja, modelo entre aspas — de apuramento dos resultados que foi denunciado pelos comissários”, contou a fonte a este jornal.

Na sua proposta, cuja discussão na especialidade terá início esta semana na Assembleia Nacional, o MPLA propõe a revogação do apuramento municipal e provincial, reservando esta competência de forma exclusiva à Comissão Nacional Eleitoral, em Luanda, com base nos dados fornecidos pelas assembleias de voto no território nacional e no exterior do país. Ou seja, a CNE irá centralizar todos os resultados obtidos através das Comissões Municipais e Provinciais Eleitorais e proceder ela mesmo ao apuramento dos resultados.

O modus operandi das eleições de 2017

Segundo a fonte deste jornal, o método aplicado em 2017 reaparece agora em forma de lei, com a iniciativa legislativa que revoga o apuramento dos resultados a nível municipal e provincial, tal como propõe o MPLA no projecto de lei de iniciativa do seu Grupo Parlamentar.

Em 2017, de acordo com o conteúdo dos factos narrados na solicitação ao Plenário da CNE — e como forma de justificarem a conferência de imprensa realizada a 24 de Agosto —, os signatários manifestam e reiteram o total desconhecimento acerca dos resultados provisórios divulgados pela CNE naquele dia, afirmando que “nenhuma Comissão Provincial Eleitoral, de Cabinda ao Cunene, havia-se reunido para produzir tais resultados e enviá-los para o centro de escrutínio nacional, em Luanda, tão-pouco os comissários que eram parte da coordenação do Centro de Escrutínio Nacional tomaram contacto prévio com quaisquer actas fornecidas pelas comissões provinciais”.

Na mesma carta ao Plenário, os comissários lembram àquele órgão que o que estava em causa na posição assumida, a 24 de Agosto de 2017, não era uma contestação dos resultados anunciados, mas a forma como estes foram apresentados na reunião plenária sem que se soubesse a sua proveniência.

“Ora, nem as Comissões Provinciais Eleitorais forneceram tais dados, nem os signatários, tal como lhes assistia, viram as actas sínteses que geraram tais dados”, referem na carta os comissários, para quem “de facto, o próprio Plenário fora também apenas ‘informado’ de tais resultados, porque não os ‘produziu’ nem os ‘aprovou’”.

Os subscritores justificam no documento a realização da segunda denúncia, feita a 6 de Setembro de 2017, por considerarem “ter havido uma violação grosseira dos direitos fundamentais dos cidadãos eleitores, porquanto não houve apuramento provincial dos resultados eleitorais em 15 das 18 províncias do país nos termos estabelecidos pelo artigo 124.º e seguintes da Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais (Lei n.º36/11, de 21 de Dezembro)”.

Os comissários recorrem aos três passos estabelecidos pela lei para o apuramento dos resultados eleitorais para se defenderem da decisão do Plenário da CNE, citando o previsto no artigo 127.º, sobre a “apreciação de questões prévias, ou seja, reapreciação dos boletins reclamados e daqueles considerados nulos pelas mesas de voto”, o único passo que consideram ter sido observado na fase de apuramento.

Os outros dois, previstos nos artigos 126.º e 127.º, que compreendem a “verificação do número total de eleitores votantes na província através da averiguação dos cadernos eleitorais para determinar o número de eleitores do qual se deu baixa no acto da votação” ou a “verificação do número total de votos obtidos por cada lista com base nas actas individuais das mesas de voto, que lhe foram remetidas pelas respectivas comissões municipais eleitorais”, os subscritores asseguram categoricamente não terem sido observados.

De acordo com o documento subscrito pelos comissários nacionais, à excepção do primeiro, nenhum desses passos teriam sido observados em 2017, de modo que se “presume, com legitimidade, que o presidente da CNE terá dado ou mandado dar instruções às Comissões Provinciais Eleitorais, através dos seus presidentes, para dar apenas o primeiro passo”.

Os comissários nacionais referem que, como consequência da não observância dos outros dois passos, cerca de cem comissários em todo o país recusaram-se, à data dos factos, “assinar as putativas actas de um apuramento que, na verdade, nunca foi feito”.

“Por tudo quanto está exposto, a deliberação do Plenário deve ser anulada porque se baseia na subversão dos factos”, afirmam na solicitação ao Plenário, asseverando que “os factos [narrados no documento] são evidentes, irrefutáveis e não se podem calar: não houve apuramento provincial dos resultados eleitorais em 15 das 18 províncias do país”.

Apuramento após o fim do anúncio dos resultados provisórios

Segundo a carta dos comissários nacionais ao Plenário da CNE, logo a seguir à votação, nenhuma Comissão Provincial Eleitoral deu logo início às operações de apuramento, ficando-se assim a aguardar por “ordens superiores”.

O documento refere que a CNE só decidiu “preparar” o início do apuramento provincial na sua 26.ª Reunião Plenária Extraordinária, realizada na noite do dia 25 de Agosto, quando decidiu também dar por encerrada a difusão dos resultados provisórios que havia iniciado no dia anterior, isto é, no dia 24 de Agosto.

Na tabela que fazem constar no documento, espelhando cada província, a respectiva data e a hora de início dos trabalhos, consta que as operações de apuramento provisório provincial dos resultados eleitorais tiveram lugar apenas a partir do dia 27 de Agosto, ou seja, três dias depois da realização das eleições gerais, 23 de Agosto, e dois dias após o fim do anúncio da divulgação dos resultados provisórios, feitos a 24 e 25 de Agosto.

“Como se constata, nenhuma Comissão Provincial Eleitoral iniciou as operações de apuramento ‘logo após o encerramento da votação’, no dia 23 de Agosto. Sete delas iniciaram no dia 27, oito no dia 28, duas no dia 29 e uma, Malange, no dia 30 [de Agosto]. Fizeram isso não por ignorância, mas por terem recebido ‘ordens superiores0, escreveram os comissários, reiterando a necessidade do órgão colegial reconsiderar a decisão de instaurar os processos disciplinares.

Sobre as alegadas “ordens superiores”, os comissários enumeram dois casos. No primeiro, narram a situação vivenciada pelo presidente da Comissão Provincial de Benguela, que disse a dois colegas dos seus colegas ter recebido no dia 27 de Agosto “instruções específicas do comissário nacional Manuel Camati, coordenador do grupo de comissários que supervisiona Benguela, para não fazer o apuramento provincial nos termos estabelecidos pela lei”.

No caso Cabinda, os comissários contam o episódio vivido pelo presidente da comissão provincial daquela circunscrição, que teve de escrever para o presidente da CNE, que, em resposta, lhe teria dado uma nova “orientação” no sentido do cumprimento da lei. Os subscritores fazem constar na carta ao plenário uma SMS, enviada por volta das 20h39, do dia 26 de Agosto, cuja autoria é atribuída ao responsável da Comissão Provincial de Cabinda, dirigida a todos os comissários.

“Após receber uma reclamação, Sua excia senhor presidente da CNE orientou no sentido de, com a urgência que se impõe, procedermos à operação de apuramento com base nas ACTAS das operações eleitorais das mesas de cada assembleia de voto. Assim, convoco todos os membros do Plenário e mandatários para se fazerem presentes amanhã, às 8 horas, a fim de procedermos à soma das actas, mesa por mesa, num total de 527 actas. Ngongo. Acusem a recepção”, lê-se no documento.

Os comissários afirmam ainda na mesma carta que, “salvo raras excepções, as Comissões Provinciais Eleitorais não centralizaram as actas das mesas de voto constituídas dentro dos limites territoriais de sua jurisdição, assinadas por todos os intervenientes, para delas, e só a partir delas, retirar os resultados eleitorais obtidos por cada candidatura e proceder ao apuramento dos resultados a nível da província, como manda a lei”. Segundo os comissários, terão sido elaborados e assinados documentos falsos a que chamaram de apuramento provincial.

Constitucional, os comissários contestam os dados provisórios anunciados, defendendo que “as actas sínteses nas quais se terão baseado para fazer o putativo apuramento provisório não foram remetidas pelas provinciais eleitorais, como manda a lei”, pelo que “não podem e não devem ser utilizadas como base para o apuramento definitivo dos resultados eleitorais, nem para a conversão dos votos em assentos parlamentares, porque não possuem elementos de garantia da sua integridade”.

Em conclusão, os comissários escrevem que, “atendendo que o processo de organização, condução e gestão das eleições de 2017 foi eivado de vícios e bastante contestado”, entendem, para o bem da instituição, “não ser de interesse público nem haver razão alguma de natureza objectiva que aconselhe reabrir feridas que já estão a cicatrizar, nem forçar os cidadãos a assistir a incriminações entre os membros do plenário da CNE”.

“Entendem ainda os signatários que a melhor forma de preservar o que ainda resta do bom nome e da credibilidade da CNE é trabalhar no sentido de se corrigirem os erros, aprofundar o respeito pelo Estado democrático de direito no funcionamento democrático do plenário, fortalecendo assim a sua unidade de pensamento de acção. Mas nunca ofender a Constituição e voltar a abrir feridas que já estão a cicatrizar”, lê-se no documento, que pedia a anulação da deliberação do Plenário, que, segundo, os signatários “pretendia encobrir uma violação eleitoral”.

Contudo, os comissários deixam um aviso ao órgão colegial, caso este tivesse um outro posicionamento e decidisse levar adiante os processos disciplinares deliberado na 37.ª reunião extraordinária do Plenário: “Não sendo esse o entendimento de vossas excelências, não nos restará outra alternativa senão, no interesse público, tornar pública a presente solicitação, para a defesa da Constituição, das leis e do interesse geral”.

Facto é que volvidos quatro anos, e contrariamente ao que ocorreu em 2016, quando seis comissários foram sancionados e o assunto foi tornado público, o Plenário da CNE não levou adiante o processo de punir os comissários nacionais e provinciais, que vieram a público denunciar a origem duvidosa dos resultados que deram vitória ao MPLA e ao seu candidato.

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