Falta de profissionais no Hospital Municipal do Talatona: IMPÕE QUE TRÊS MÉDICOS ATENDAM MAIS DE MIL UTENTES POR DIA

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Domingos Jacinto, médico-cirurgião, é o director-geral do Hospital Municipal do Talatona, com quem fomos à conversa sobre as condições da unidade sanitária que dirige, tendo revelado, dentre outros, haver debilidades nos recursos humanos, pois, há dias em que apenas três médicos atendem mais de mil pacientes, assim como o facto de o hospital viver de “manobras” económicas.

 Jaime Tabo

J ornal O Crime – Os utentes reclamam sobre o atendimento demorado no hospital, verificando-se pessoas que chegam nas primeiras horas do dia e, apenas, são atendidas no final do dia. O que estará na base deste facto, doutor?

Doutor Domingos Jacinto – Muito obrigado, caro jornalista. Sabemos que, em princípio, temos algumas debilidades nos recursos humanos, digo isso de acordo com a demanda. Ou seja, temos, por cada Banco de Urgência, um médico, um na Medicina, um na Pediatria e um na Ginecologia. Portanto, nos nossos serviços de urgência, nos momentos de pico da malária, agora que começaram as chuvas, temos experimentado números elevados da doença, que é a principal causa de acorrência às urgências. Com apenas três médicos, já chegamos a atender mais de mil utentes em 24 horas. Muitas vezes, estes reclamam pelo atendimento, mas o que se passa é que no Banco de Urgência, o atendimento não é por ordem de chegada, mas por gravidade. A maior parte dos utentes que vêm às urgências não têm critérios de urgência, são doentes que podem ser vistos na consulta, tratando-se de uma patologia crónica ou, simplesmente, de controlo. Mas estando no Banco de Urgência, terá de ser visto. 

Jornal O Crime – Todos os utentes devem ir às urgências?

Doutor Domingos Jacinto – Não, nem todos devem ir às urgências. Nós temos os serviços ambulatórios, ou seja, serviço de marcação de consulta. Por exemplo, se eu sou hipertenso, serei visto, inicialmente, no Banco de Urgência. Mas, quando voltar ao hospital, não preciso ir para lá. Marco uma consulta de seguimento e terei um cartão com as datas em que devo voltar. No entanto, infelizmente, os nossos utentes não cumprem este fluxograma, mesmo com uma patologia crónica, quer dizer, está com a doença há muito tempo, ou uma ferida crónica, ele vai ao Banco de Urgência.

Muito obrigado, caro jornalista. Sabemos que, em princípio, temos algumas debilidades nos recursos humanos, digo isso de acordo com a demanda. Ou seja, temos, por cada Banco de Urgência, um médico, um na Medicina, um na Pediatria e um na Ginecologia. Portanto, nos nossos serviços de urgência, nos momentos de pico da malária, agora que começaram as chuvas, temos experimentado números elevados da doença, que é a principal causa de acorrência às urgências.

Jornal O Crime – Isso significa que os utentes têm solicitado os serviços errados?

Doutor Domingos Jacinto – É uma questão de orientação e cultura. Como o Banco de Urgência é livre e aberto a todos, então, as pessoas acorrem para lá. Mas quando chegam doentes com critérios de urgências, nós priorizamos estes, como os que estejam a convulsionar, com febre alta ou vómitos. Estes são sempre atendidos de forma prioritária em relação aos outros. Assim sendo, gera algum descontentamento à quem chegou mais cedo, pelo que, tendo em conta a demanda, os doentes esperam algum tempo para serem atendidos. Todavia, são sempre atendidos. É verdade que têm de esperar algum tempo, quando não apresentam critérios de gravidade, pois, repito, todo doente grave é, prontamente, atendido, embora tenhamos apenas um médico a atender. É mais ou menos isso o que tem acontecido nos serviços de urgências.

Jornal O Crime – Fala-se em atendimento de baixa qualidade, principalmente em débil comunicação de enfermeiros para os pacientes. Será que a pouca força de trabalho não gera uma certa impaciência aos funcionários? 

Doutor Domingos Jacinto – Na verdade, o que temos mesmo é uma demanda muito superior em relação à oferta em recursos humanos. Conforme disse, se em 24 horas atendermos 800 pacientes e só temos três médicos, já dá para imaginar o rácio doente-médico.

Jornal O Crime – Quantos médicos precisariam para um serviço mais eficaz?

Doutor Domingos Jacinto – Para um serviço de urgência, como o nosso, devia contar, em 24 horas, com nove médicos, três em cada especialidade. Mas temos, infelizmente, apenas três.

Jornal O Crime – O que é preciso para que se aumente o quadro de pessoal no hospital?

Doutor Domingos Jacinto – Este é um problema que, de certa maneira, é transversal, e o Executivo tem feito a sua parte. Alguns anos para cá, já temos tido concursos públicos regulares. Se o mantivermos esse ritmo de ingresso de funcionários no Ministério da Saúde, daqui a dois ou três anos, poderemos ter essa situação resolvida. Já estivemos pior.

Jornal O Crime – Há um registo de mortes considerável no Banco de Urgência por falta de recursos humanos?

Doutor Domingos Jacinto – Não temos uma taxa de mortalidade muito alta, tendo em conta o número de doentes que nós atendemos, não chega sequer a 1 por cento, rondando entre os 0,3 e 0,5 por cento. 

Jornal O Crime – Sobre as mortes extra-hospilares, há muitas aqui, no hospital municipal?

Doutor Domingos Jacinto – Entre Março e Junho do ano passado, período em que vivemos o Estado de Emergência, tivemos muitos óbitos extra-hospitalares, ou seja, doentes que chegam mortos no hospital ou que chegam num estado muito grave e morrem em menos de duas horas.

Jornal O Crime – Quantas mortes ocorreram nesse período, no ano transacto?

Doutor Domingos Jacinto – Nós temos uma mortalidade, por mês, de oito a dez, mas, só para exemplificar, no mês de Junho tivemos cinquenta óbitos, dos quais, 33 extra-hospitalares.

Jornal O Crime – Qual é a causa dessas mortes?

Doutor Domingos Jacinto – A comunidade que atendemos, na sua maioria, vive da venda ambulante. As mães vão às vendas, deixando as crianças sob cuidados de outras crianças e, não raras vezes, encontram os filhos com muita febre, por vezes mesmo já a convulsionar. Com isso, chegam com os menores em estado muito grave e acabam por morrer no hospital. Por outro lado, na altura, era mesmo o medo de vir ao hospital, devido ao desconhecimento da covid- 19. Aliás, nós, os profissionais, também tivemos medo.

Jornal O Crime – Qual é o nível desse hospital, doutor?

Doutor Domingos Jacinto – Sobre os níveis de hospitais, existem os primários que são os centros e postos de saúde. Nós estamos a nível secundário, no mesmo nível dos provinciais, como o Geral de Luanda. Depois existem os terciários que são os nacionais.

Jornal O Crime – A falta de hospitais de nível primário não contribui para as enchentes nos hospitais de nível secundário?

Doutor Domingos Jacinto – Os hospitais primários até existem, porque a nível deste município, existem 15 unidades primárias. Agora, precisamos avaliar o grau de resposta que estas unidades dão. Se formos a esses centros, vamos encontrar também enchentes. 

Jornal O Crime – Então aonde estará o problema?

Doutor Domingos Jacinto – Acho que as unidades não acompanharam o crescimento das nossas comunidades, tanto é que, dentro das administrações municipais, dentro do PIIM, estão incluídas construções de hospitais. Isso significa que ainda temos uma carência nesse quesito. Precisamos de mais unidades de nível primário, para que um cidadão com febre não saia do bairro Mundial até aqui. 

Jornal O Crime – Além das especialidades em urgências, quais são as outras que o hospital atende?

Doutor Domingos Jacinto – Atendemos a Odontologia, que é o tratamento dos dentes, Fisioterapia, Psicologia, Ortopedia, Cirurgia e Psiquiatria. São especialidades que não têm serviços de urgências. Não fazem 24 horas, mas trabalham sempre das 08 horas às 15h. 

“Tendo em conta a demanda, os medicamentos que vêm do Depósito Provincial são insuficientes”

Jornal O Crime – Há, neste hospital a assistência medicamentosa?

Doutor Domingos Jacinto – A assistência medicamentosa é, também, uma situação que podemos dizer que temos tido, em certos momentos, alguma dificuldade. O hospital é orçamentado, além disso, recebe o suprimento medicamentoso do Depósito Provincial de Medicamentos. Mas, tendo em conta a demanda dos doentes, muitas vezes, o que vem do depósito é insuficiente. Não conseguimos oferecer medicamentos a todos, todos os dias. Quando isso acontece, temos de recorrer ao nosso orçamento e fazer aquisições aos fornecedores. Por outro lado, temos ainda o apoio da Direcção Municipal da Saúde que, por vezes, dá um suporte com medicamentos e gastáveis para suprir as necessidades dos doentes.

Jornal O Crime – Quem faz a gestão do orçamento?

Doutor Domingos Jacinto – É a Direcção do Hospital quem gere o orçamento, tendo em conta as necessidades da unidade. Sabemos que o hospital é uma unidade bastante complexa. Existem serviços complexos, desde a electromedicina, serviços de reparação dos equipamentos do bloco operatório, do Raio X, da ecografia, da fisioterapia, cuja manutenção é cara. Temos, ainda, outros custos, como a ambulância, o gerador, a compra de medicamentos, pagamentos de serviços de segurança, a limpeza, enfim, temos uma série de custos que vamos tentando gerir.

Jornal O Crime – Com esses custos, o orçamento que é alocado ao hospital serve para acudir as despesas?

Doutor Domingos Jacinto – Realmente, gostaríamos que fosse mais, no entanto, essa é a realidade. Sabemos que o mundo, nesse momento, está a passar por um abalo económico, e nós não fugimos da regra. Então, com o que nos é alocado, fazemos os possíveis para conseguir ter esses serviços funcionais.

Jornal O Crime – Pode avançar o valor alocado?

Doutor Domingos Jacinto – O valor alocado ao hospital tem sofrido algumas variações, principalmente nessa fase das actualizações orçamentais. Por isso, eu prefiro não arriscar.

Jornal O Crime – Essas actualizações, em geral, são de acréscimo ou de redução do valor?

Doutor Domingos Jacinto – Por vezes para mais, por vezes para menos. Varia de acordo ao desenrolar do momento económico. Mas, o que posso dizer é que é insuficiente para os custos inerentes ao bom funcionamento do hospital. Gostaríamos, realmente, que fosse mais. Fazemos sempre um esforço para que os utentes saiam daqui tratados. 

Jornal O Crime – O hospital vive de uma gestão de contenção?

Doutor Domingos Jacinto – Sim. Estamos numa gestão de contenção, numa gestão de apertos, de muita “manobra”, para que a gente consiga ver as prioridades.

Jornal O Crime – Há hospitais que são sustentados directamente pelo Ministério da Saúde, e outros pelo governo da província. Qual é o caso deste?

Doutor Domingos Jacinto – O hospital municipal está sob alçada do governo provincial, mais concretamente do Gabinete Provincial da Saúde de Luanda. E, mais abaixo, a Administração Municipal, concretamente a Direcção Municipal da Saúde. Porém, a nível central é o Gabinete Provincial da Saúde quem controla a gestão dos hospitais municipais.

Jornal O Crime – Quais são os exames clínicos que o hospital oferece?

Doutor Domingos Jacinto – O nosso laboratório está completamente equipado. Não devemos nada aos outros laboratórios de unidades públicas ou privadas, em termos de equipamentos. Temos alguns problemas apenas com os reagentes. 

Jornal O Crime – Que reagentes?

Doutor Domingos Jacinto – Há reagentes de exames que não são muito comuns. Por exemplo, um exame da próstata, ao nosso nível, não é tão solicitado, porque não temos um serviço de Urologia, no entanto, temos o equipamento. Assim acontece, também, com o exame da tiróide. Na verdade, é que, tendo em conta as verbas que possuímos, temos de fazer uma “ginástica” para que o essencial não nos falte. Tentamos ter aquilo que é o mais comum, como o hemograma, a gota espessa, a creatinina.

Jornal O Crime – Este jornal observou a situação de uma utente que acabou por regressar com as suas três filhas menores, que estavam com sintomas de paludismo, sem que estas fizessem o exame médico, porque no laboratório não tinha materiais para realizar a Pesquisa de Plasmódio….

Doutor Domingos Jacinto – Não sei realmente de que material se tratava, mas o serviço de laboratório não deve encerrar, porque é de apoio às urgências. Se as urgências são 24 horas, os serviços de apoio devem ser, também, 24 horas. É algo por se apurar. O facto é que fazemos sempre os possíveis para que não pare.

Jornal O Crime – Já houve vezes em que o laboratório teve de parar por falta de materiais?

Doutor Domingos Jacinto – Não. Não porque o laboratório é um serviço de apoio às urgências. Todo o nosso esforço, tanto humano como financeiro, é no sentido de acautelarmos isso. Entretanto, não digo que nunca aconteceu, mas, se por algum momento, tivermos ruptura de algum reagente ou de gastável, prontamente fazemos diligências para que seja reposto o material em falta.

Jornal O Crime – Uma vez que, como disse, o valor alocado ao hospital não é suficiente, nunca houve ruptura no estoque?

Doutor Domingos Jacinto – Tem acontecido, mas prontamente conseguimos contornar, porque trabalhamos com fornecedores. Quando necessitamos de alguma coisa, solicitamos, para que, no final do mês, façamos o pagamento. São nossos parceiros.

Jornal O Crime – Nesse momento, o hospital não tem dívidas com os fornecedores?

Doutor Domingos Jacinto – Não. Nesse momento, o hospital não tem dívidas com os fornecedores. 

Jornal O Crime – O hospital conta com uma fábrica de oxigénio?

Doutor Domingos Jacinto – Sim, temos uma fábrica de oxigénio. Não dependemos de compras de botijas de oxigénio, precisamos manter essa fábrica funcional. Não vendemos, sustentamos apenas o hospital, e é suficiente para nós.

Jornal O Crime – As ambulâncias que o hospital tem são suficientes?

Doutor Domingos Jacinto – Nós temos duas ambulâncias, uma das quais encontra-se na oficina com um problema técnico. Estas são suficientes por conta da nossa capacidade de resposta. Não temos um número de transferências que precisaríamos de mais de duas ambulâncias, um ou outro caso é que transferimos para o nível terciário. 

Jornal O Crime – Para terminar, quer acrescentar algo que não foi questionado?

Doutor Domingos Jacinto – Primeiro, quero agradecer a vossa presença aqui no hospital, dizer que estamos abertos para mais visitas. Vocês são, também, nossos parceiros, são aquele olho à distância. Muitas vezes, não conseguimos notar os nossos erros, é preciso que alguém de fora vê e nos alerte. Para os nossos utentes, reconheço que, muitas vezes, o nosso trabalho não satisfaz as vossas expectativas, tanto por debilidades humanas ou por alguma insuficiência material que possamos ter em alguma ocasião. Mas, todo o esforço está a ser feito para que continuemos a melhorar, para que possamos ter um atendimento humanizado. De referir que temos um número afixado no hospital para denúncias, e sou eu quem atende esse telefone. Todo doente que se sentir injustiçado ou maltratado, pode ligar.

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