Informante do SIC por mais de 20 anos: DENUNCIA ESTADO DE ABANDONO E AMEAÇAS DE MARGINAIS

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O assassinato da sua primeira esposa e violação da segunda, diante do filho menor de 1 ano, são algumas das consequências que Pascoal Pinto Domingos vive, após ser ‘recrutado’ pela, então, Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC), hoje Serviço de Investigação Criminal (SIC), para actuar como informante, com a promessa de, aos 18 anos, ser enquadrado na corporação. Depois de mais de duas décadas de serviço perigoso, de muita exposição e risco, nada se cumpriu e, estranhe-se, das várias queixas-crime que fez, ninguém foi responsabilizado.

Issunji Muxima

Crime – Como é que se tornou informante da DNIC?

Pascoal Domingos – Lembro-me que, em 1996, em conversa com os meus amigos, na praça do Tunga Ngó, falava sobre um vizinho que estava em posse de uma arma de fogo. O investigador Basílio Candombe, que estava lá a almoçar, ouviu a conversa e chamou-me para me convencer a passar mais dados para a equipa dele. Eu vivia no Rangel, na rua do Mata Gato. Com 10 anos de idade, fui contratado, psicologicamente, para trabalhar com ele.

O Crime – Qual foi a proposta de recompensa que lhe fizeram?

Pascoal Domingos – Ele disse que não tinham dinheiro para me pagar, mas que, quando atingisse os 18 anos, seria enquadrado na Polícia Nacional e, para que isso acontecesse, teria que mostrar muito trabalho.

O Crime – Algum familiar seu tomou conhecimento disso?

Pascoal Domingos – Naquele momento, não. Embora fosse ainda criança, tive a capacidade de guardar este segredo. Foi o que eles me ensinaram, nem os meus pais poderiam saber e, se outras pessoas se apercebessem, podia ser morto pela população, porque ninguém gosta disso. Por isso, sempre acautelei o sigilo profissional.

Porém, com 14 anos, aproximadamente, a família começou a desconfiar, pela frequência com que as pessoas me viam nas esquadras. Apesar de não gostarem, continuei, porque sabia que estava a contribuir para melhorar o meu país.

O Crime – Quais foram os resultados obtidos com o seu trabalho?

Pascoal Domingos – Além da recuperação da arma do meu vizinho, naquela altura, desmantelámos a maioria das associações de malfeitores que surgiram na minha zona, nomeadamente “Os Ule Squad”, “Os The Best Forever”, “Os Sangue Fúria Squad”, “Os Felizanes Squad”, “Os Tempera Squad”, “OS Wegue Squad”, “Os Elementos Squad”, “Os Nagrelha Squad”, “Os Dibo Squad” e “Os Nila Squad”.

Em 2001, o investigador Basílio foi transferido para o município da Samba e deixou-me no Rangel, onde não tinha grande confiança com os colegas dele. Por este motivo, no ano seguinte, como já conhecia bem o trabalho operativo secreto, fui até à DNIC apresentar a minha situação e colocaram-me no Departamento de Combate ao Narcotráfico, chefiado por Alfredo Melão, na altura superintendente, e onde, também, faziam parte os chefes Bangão e Evaristo Manuel João “Kimbas”, das Linhas Operativas.

Neste departamento, sabíamos de um compromisso muito sério: se eu não fosse à operação e o trabalho não tivesse êxito, podiam, até, desconfiar que estava na matina operativa e, a partir daí, começar a ser visto de outra forma. Então, com ou sem saúde, tínhamos que operar, era um compromisso com a Nação, que se queria mais justa e com menos crimes.

O Crime – Até aqui, a promessa de emprego permanecia?

Pascoal Domingos – Sim, tanto que o director, Alfredo Melão, orientou-me, por quatro vezes, a entregar a minha documentação. O chefe Kimbas também. E eles davam um formulário que eu assinava e que servia para o reconhecimento da fonte no órgão.

O Crime – Sentiu que estava mais perto de ingressar à Polícia?

Pascoal Domingos – Quando, em 2009, entraria para os Serviços Prisionais, o chefe Melão disse que tinha que esperar por outra oportunidade, porque as vagas eram apenas para pessoas que já tinham, pelo menos, a 10.ª classe. E ficamos por aí, apesar de eu continuar a pressionar os chefes.

Fico bastante sentido porque, anteriormente, eu tinha uma voz na DPIC. Uma comunicação minha, tinha resposta imediata das forças. Isso me dava ainda mais confiança de que seria chamado.

O Crime – Nesta altura, à beira de se cumprir a promessa de integração ao órgão, recebia algum valor?

Pascoal Domingos – Não. Podia apenas beneficiar do dinheiro que restava do trabalho operativo, valor que, muitas vezes, davam para comprar drogas aos traficantes e outros produtos de venda proibida, de formas a conseguirmos provas dos crimes que estávamos a investigar.

O Crime – Participava nas buscas e capturas?

Pascoal Domingos – Algumas vezes. Havia casos em que não era necessário e outros que a minha presença podia facilitar que o visado colaborasse, após reconhecer a fonte.

O Crime – Tinha algum passe de serviço?

Pascoal Domingos – Na 6.ª Esquadra do Rangel, tinha um cartão que me possibilitava o acesso ao estabelecimento. Mas o investigador ‘Boneco’, da 12.ª Esquadra, reteve-o num litígio que tive com a minha irmã. Por influência dela, e porque não me quis identificar, detiveram-me, até descobrirem que era inocente.

O Crime – Qual era a base do litígio?

Pascoal Domingos – Herança familiar. É um problema que procurei resolver, apesar da ganância e insistência em me verem lesado. A vida não é feita com heranças.

O Crime – Também lhe davam arma e uniforme da DPIC?

Pascoal Domingos –  Em certos casos, sim. E foi isso que contribuiu, também, para que as pessoas se apercebessem do trabalho que fazia.

O Crime – Não teve receios?

Pascoal Domingos – Naquela altura, pelo menos, sentia-me muito bem protegido pela DPIC. O então director, António Guimarães, velava muito pelas fontes operativas que trabalhavam afincadamente. Ele dava muita força e cumpríamos a nossa missão, porque sabíamos que a promessa seria realizada. Mas, após o seu falecimento, o quadro inverteu-se e as fontes foram desvalorizadas.

Depois de usado, chefes que trabalharam com Pascoal se tornaram invisíveis

O Crime – Neste momento, como é que está o processo de enquadramento?

Pascoal Domingos – Começo a sentir que perdi o meu tempo. São, aproximadamente, 25 anos a trabalhar no serviço operativo de baixa visibilidade. Sempre me pediram para aguardar a incorporação, mas não acontece. Apenas dizem tratar-se de um assunto ultra-secreto, tinha que escrever para os directores e estes confirmarem a minha situação. Infelizmente, nenhum deles mostrou-se disponível a confirmar que trabalhou comigo.

O Crime – Tentou saber se há processos no SIC que certificam o seu trabalho de fonte?

Pascoal Domingos – Sim. Em tempos, ainda, dirigi-me ao Departamento de Investigação e Identificação Criminal (DIC), onde ficam os documentos de todas as fontes reconhecidas pela instituição, e o responsável disse-me que não há qualquer registo meu. Segundo ele, para o meu enquadramento, um dos oficiais que foi meu chefe no Departamento de Combate ao Narcotráfico deve confirmar, por escrito, que trabalhou comigo. Contactei vários deles e nenhum se disponibilizou a fazer o documento.

O Crime – Tentou contacto com o investigador Basilho, o oficial que lhe terá contratado e apresentado a proposta?

Pascoal Domingos – Não, após ter sido transferido para a Samba, ficámos muito tempo sem nos vermos, isso há mais de 17 anos. Agora, o contacto com ele está ainda mais difícil, mas continuo atrás.

O Crime – Quem são os oficiais que podiam fazer esta certificação?

Pascoal Domingos – Os chefes Basilho Candombe, “Bangão”, hoje em funções no DIC Nacional, Evaristo Manuel João “Kimbas” (das Linhas Operativas), Isaías Francisco “Joi” (chefe de brigada) e muitos outros oficiais operativos que andaram connosco.

O Crime – Recorreu a outras entidades para ver a sua situação resolvida?

Pascoal Domingo – A muitas…  Escrevi para o ex-ministro do Interior, Ângelo da Veiga Tavares, que orientou, através do ofício 19946, aos Recursos Humanos do SIC-Geral, a minha reintegração. Entreguei os processos para o concurso público interno, mas não ingressei. Remeti o caso ao actual ministro, César Laborinho, cuja resposta tem o ofício 13044. O SIC disse para não voltar ao Minint, porque estavam a dar tratamento ao processo. Dei todos os documentos, mas não fui chamado. No entanto, entraram alguns colegas auxiliares de limpeza, que eu mesmo ajudei a conseguirem emprego.

Também escrevi para a Inspecção-Geral da Administração do Estado (IGAE) que, recentemente, dada a natureza do caso, encaminhou o assunto à consideração do SIC. O director, Arnaldo Carlos, em resposta solicitada pelo Gabinete da Sub-Procuradora-Geral da República junto do SIC-Geral, após uma carta que remeti, disse que «tivemos indicativo que o exponente terá supostamente colaborado com o Serviço de Investigação Criminal, mas informamos que, de momento, não estão abertas candidaturas para o concurso de ingresso».

Pergunto-me por que os outros, inclusive pessoas que nunca prestaram nenhum serviço ao Ministério do Interior, passam na normalidade e eu não, apesar dos processos que tenho? Por que este abandono?! Eu era muito dedicado. O meu trabalho me obrigou a conviver com pessoas que depois me podiam odiar.

“Minha primeira esposa foi morta pelos bandidos, a actual foi violada”

O Crime – Nos casos em que participava, não sofreu retaliação?

Pascoal Domingos – Quando o detido deixa a cadeia, a fonte fica sempre marcada, por ter ajudado para que a prisão acontecesse. Trabalhei todo este tempo sem salário, porque sabia que chegaria a altura certa. Mas, na minha vez, só chega retaliação… Assaltaram e atearam fogo à minha casa por quatro vezes.

No Rangel, havia dois indivíduos altamente perigosos. O Dom Vaya, tenente das Forças Armadas, e o Castor, subinspector da Polícia de Intervenção Rápida. Esses tentaram convencer-me a juntar-me a eles no tráfico de drogas. Por ter rejeitado, sofri, várias vezes, ameaças de morte. Já chegaram mesmo a dar-me corrida de tiros.

Eu vivia no município em que eles operavam e tinha a missão de controlá-los. A equipa de Narcotráfico era umas das mais rápidas na DNIC, mas era difícil apanhá-los, trabalhavam sustentados por forças ocultadas. Eu tinha noção do perigo que eles representavam, matavam até os funcionários, quando não apresentassem as contas certas. Apesar disso, sempre lhes adverti: “cada porco tem o seu Natal”.

O Castor, principalmente, teve muitos atritos comigo, por ser um dos barões da droga no Rangel e Cazenga. Foi expulso da PIR e morto pela Polícia, há cerca de sete anos.

O Crime – As corridas de tiro foram protagonizadas pelas mesmas pessoas?

Pascoal Domingos – Não. E prefiro, neste momento, reservar o nome delas. O cabeça da missão era um alto traficante de drogas que hoje chegou ao posto de superintendente-chefe da Polícia. Se tiver a oportunidade de estar com o presidente da República, poderei dizer o nome. O Departamento de Combate ao Narcotráfico conhece-o muito bem, durante muito tempo, ele beneficiou da protecção de uma tia que trabalha na investigação criminal. Já lhe prendemos com grandes quantidades de droga e nunca foi a tribunal, também porque não chegava ao conhecimento do director António Guimarães.

O Crime – Chegaram a atingir a sua família?

Pascoal Domingos – Por causa deste trabalho, a minha primeira esposa foi morta pelos bandidos. A actual foi violada em Março do ano passado e, até agora, não foram encontrados os culpados pelos dois crimes. Para mim, o Dom Vaya e o Castor continuam a ser os principais suspeitos, são eles que financiavam alguns bandidos para me atingir.

O que a DNIC me ensinou, pude usar para me proteger, mas a minha família não teve a mesma sorte. Em 2008, fiquei um tempo na casa do meu irmão, no Sambizanga, e ela estava no Cazenga. Foi para uma festa, em Viana, e apareceu morta. Passei-lhe toda cautela, sabia que, por causa do meu trabalho, não podíamos ir a festas.

O Crime – Houve alguma investigação para esclarecer o caso?

Pascoal Domingos – Houve. A equipa de combate ao narcotráfico trabalhou afincadamente para isso, mas não foram encontrados os presumíveis autores. Os meus chefes tinham uma grande consideração por mim e não aceitariam que passasse por esta situação.

O Crime – Conhece os violadores da sua esposa?

Pascoal Domingos – O jovem está bem identificado, chama-se Joni Domingos Francisco, mais conhecido por “Negrinho”. Tem um irmão polícia, o “Kibrilha”, também marginal, e fugiu do Sambizanga para o Cazenga, na casa dos pais, por estar a ser procurado. No meu bairro, é fornecedor de armas de fogo aos delinquentes.

A minha esposa estava a vender numa feira, perto de casa, e ele a imobilizou com uma arma de fogo. Antes de partir para o acto sexual, disse que não lhe matou por sorte, porque eu, o marido dela, já fiz mal para muita gente. Foi tudo na presença do meu filho, com um ano de idade. Isto aconteceu por causa dos trabalhos que fiz com o SIC.

Dizia o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, na sua tomada de posse: «as culpas criminosas não devem morrer solteiras». Isso significa que, todo aquele que comete um crime, deve ser responsabilizado. Mas não é isso que está a acontecer.

O Crime – O que fez para que ele fosse responsabilizado?

Pascoal Domingos – Orientei a minha esposa a fazer uma queixa-crime contra ele e os agentes começaram a dar voltas para lhe atender, dada a influência do jovem. Fomos até ao SIC-Luanda e o processo culminou com a detenção dele. Confessou o crime, mas, posteriormente, foi posto em liberdade, alegadamente por ter havido falha no processo que o levou à detenção. Dois meses depois, ele e o irmão ameaçaram-me, dizendo que, em pouco tempo, estaria morto. E eu disse que isso lhe iria custar caro.

O Crime – Quer falar sobre os assaltos e incêndios de que foi vítima?

Pascoal Domingos – Os assaltos em minha residência aconteciam quando me ausentasse para trabalhar. Passava noites fora por causa de um serviço que estava a fazer. Nos anos 2013, 2015 e 2017, das três vezes que me ausentei, em cada uma delas assaltaram e atearam fogo a minha casa, no Cazenga. Ninguém consegue dizer quem foi o responsável, apesar de peritos certificaram que, das três vezes, foram incêndios causados, até porque já encontrámos a janela arrombada.

Certo dia, assaltaram a casa da minha inquilina, pensando que eu ainda estivesse lá a morar. E fui transformado no malfeitor, apontam-me como o protagonista dos assaltos que os inquilinos sofrem.

O Crime – Por que acha que não se encontram os culpados por estes crimes?

Pascoal Domingos – Porque não se quer encontrar. Em função do que sou, a própria Polícia acha que não deve dar seguimento a certas situações, sob pena de descobrir coisas que não convêm ao Estado.

Se hoje falo sobre isso à Comunicação Social, é por causa do desespero. Sempre usei o sigilo profissional. Mas perdi famílias, incendiaram a minha casa e deram-me corrida com tiros. Carrego sequelas na cabeça, sinais de agressão dos malfeitores. As respostas que chegam não são as que preciso.

Dizem-me, até, que a minha situação depende do Poder Político e não do SIC, que está sujeita à aprovação do presidente da República e do Ministério das Finanças. Sinto mentira nisso, porque nunca prestei serviço para estas entidades e, ainda que elas receberem o director do SIC, terão outros assuntos para resolver. É no SIC onde, desde os 10 anos, depositei a minha confiança e dedicação. E é esta instituição que deve tratar do meu enquadramento.

O Crime – Acha que a sua integração poderá evitar mais retaliações?

Pascoal Domingos – Com certeza! O bandido saberia muito bem que não podia agir da mesma forma. Por outro lado, evitaria que os polícias que ajudei a prender quando eram delinquentes continuassem a fazer o que bem entenderem.

O Crime – Continua a prestar serviços operativos de baixa visibilidade?

Pascoal Domingos – Achei conveniente não continuar, até que a minha situação seja resolvida. Não há moral para isso. Há indivíduos que ajudei a desmascarar, mas hoje são chefes na Polícia. E quem garante que são apenas isso? Conheço-os muito bem.

O Crime – Em função de todas estas situações, arrepende-se de ter sido usado como fonte?

Pascoal Domingos – Entre aspas. Quando consigo ajudar a desmantelar um crime, sinto-me bem, porque o mesmo podia afectar a vida de alguém próximo a mim. Não fico confortável ao olhar com indiferença para uma situação de crime, mas sinto-me mal pela forma como a instituição (SIC) está a agir comigo, não há reconhecimento.

Eu dormi na rua, apanhei chuva para combater a criminalidade. Adquiri doenças por ficar vários dias a comer mal e a apanhar poeira, toda equipa operativa. Não tínhamos tempo para uma alimentação digna.

Se quisemos ter uma Polícia mais eficaz e capaz de desmanchar pessoas de má-fé, há que se valorizar as fontes credíveis. Foram mais de duas décadas neste serviço, conheço muita coisa. Neste momento, preciso muito da solidariedade do Minint. Por causa destas situações, já pensei em tirar a própria vida. Mas estou ciente das responsabilidades que tenho e as retaliações não me levarão a isso.

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