“PÓLVORA SECA” NÃO MATA, NEM EM TRIBUNAL

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Sob a acusação de crimes de desobediência e resistência, subjacentes às medidas de biossegurança em vigor, no âmbito da situação de Calamidade Pública, quatro réus foram parar ao Tribunal Provincial de Luanda, para julgamento sumário. Entretanto, pasme-se, um deles é inspector do SIC e outro é polícia, especialista do CISP. Caso para chamar à tona o adágio “é aí que a porca torce a cauda”.

Por: Liberato Furtado

Esses dois foram os condimentos mais que suficientes para cozinhar todo um interesse público nesse julgamento, incluindo o do tribunal, acrescendo-se a pergunta que salta à vista “porquê é que um inspector do SIC saca a pistola, afronta os seus colegas da Ordem Pública, quando aconselhado a respeitar os preceitos das medidas de biossegurança, em ressentimento à covd-19?”.

O interesse foi incontornável e nos obrigou a estar na sala de julgamento até bem próximo das 19 horas e, mais uma vez, a “pólvora era seca”. Ou seja, a Polícia, uma vez mais, entrega os seus créditos em mãos alheias, pois, com tremenda e crescente desilusão, à medida que se foi ouvindo os depoimentos dos réus e declarantes que efectuaram as detenções, nos apercebemos que a Polícia do Comando Municipal de Luanda “pôs os pés pelas mãos”, passe o termo.

Os réus, em tribunal, negaram as acusações, alegando que nem sequer se conheciam, salvo o inspector do SIC e o polícia do CISP, e que só tiveram contacto depois de juntos no interior do ínfimo turismo de patrulha. Mas, o auto de notícia da Polícia dizia que os mesmos conviviam em aglomerado, na via pública, em amena cavaqueira regada de bebida.

O inspector do SIC salientou que a Polícia chegou quando se dirigia ao seu carro e não mais o largou, mesmo alertando que era colega, tendo sido, aos solavancos, colocado no carro patrulha, porque se teria negado a entregar a sua pistola aos agentes da Polícia da Brigada Moto, porque, alega, a experiência o dizia que teria dificuldades em recuperar a sua arma, atribuída por inerência de funções, já que os actuantes estavam encobertos por capacete. Mas teria entregue ao rondante na viatura, pois, a ele podia identificar.

Nesse ínterim, do entrega a pistola ou não, o réu, inspector do SIC, reconhece que foi arrastado por vários polícias, mesmo apelando ao facto de ele ser colega, aliado ao nobre pormenor de que é oficial de um órgão do Ministério do Interior, sendo que, até mesmo na Esquadra, não foi tido nem achado em momento algum.

Acto contínuo, os depoimentos dos réus foram ricos em pobreza de motivos para que fossem levados a tribunal. É que os dois membros do MININT, tal como o terceiro co-réu, que é um moto-taxi e o quarto, que é um jovem sem ocupação, se queixaram de não terem sido ouvidos na Esquadra e sequer assinado o auto de notícia, onde constava a acusação que pesava sobre si.

A Polícia espezinhou, desta feita, os ditames constitucionais, onde se pode ler que “toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada, no momento da sua prisão ou detenção, das respectivas razões e dos seus direitos, que passam por ser informada sobre o local para onde será conduzida”; informar à família e ao advogado sobre a sua prisão ou detenção e sobre o local para onde será conduzida. Agora, imagine-se: se um oficial do SIC é sujeito a tal tratamento degradante, não tem outro termo, quem é o zé-ninguém? Pergunta que, de algum modo, a juíza da causa responde com a sentença que absolve os réus. No entanto, somos todos ouvidos para quem mais se propõe em responder.

Para agravar o quadro dantesco, ou seja de horror, os declarantes deixaram o tribunal entender que foram apanhados de surpresa, quando se preparavam para o descanso merecido, e enviados ao tribunal para servirem de representantes da Polícia que os deteve, ou seja, como actuantes, quando nem sequer tiveram contacto com o auto de notícia ou acusação, se preferirmos. Os três agentes que foram representar a Polícia, até estiveram presentes na detenção, mas cometeram o erro de serem sinceros em tribunal ao, ingenuamente, reconhecerem que têm cometido um tremendo atentado aos direitos do cidadão, pois, contaram que quando chegam a uma dada situação, onde têm de intervir e há várias pessoas nas redondezas, a Polícia recolhe todos e na Esquadra fazem a destrinça.

A juíza da causa, Djoline de Almeida, com a serenidade requerida, colocou em “pratos limpos”, como soe dizer-se, e deliberou: “…acusados pelos crimes de desobediência e resistência, isto porque, supostamente, foram encontrados no bairro Nelito Soares, concrectamente, na C5, junto ao Campo d’Armonia, na via pública, a consumir bebidas alcoólicas, apontando-se aqui o Decreto Presidencial 212/20 de 9 de Agosto, que, por sua vez, impõe restrições nas regras de convivência social, atendendo o Estado de Calamidade que vivemos até o momento.

Ora, da produção de prova na audiência de julgamento, resultou que não se conseguiu provar que os quatro réus eram, concrectamente, parte das pessoas que estavam na via pública, pois, foi dito em audiência de julgamento, pelo declarante, que, sendo um aglomerado de 40/50 pessoas, o que fazem é levar todos que se encontram no perímetro para à Esquadra e resolverem já no seu interior (no caso, da Esquadra). Para além de tal método não corresponder aos requisitos do flagrante delito e não garantir, assim, uma detenção legal, não podem os cidadãos verem a sua liberdade privada sem que haja razões ponderosas; daí que o Direito Penal seja da última rácio, no que respeita a sua intervenção, que restringe um dos direitos fundamentais consagrados na Constituição da República: a liberdade”.

A procuradora, junto do Ministério Público, Natasha dos Santos, também defendeu a libertação dos réus, com o fundamento no princípio in dúbio pro réu, que quer dizer, por outras palavras, que a dúvida beneficia o réu.

Os polícias que foram representar a corporação no tribunal deixaram a impressão que os seus chefes, cientes da dimensão do eventual erro cometido na detenção, mesmo tendo sido sob suas ordens, preferiram empurrar “bodes expiatórios”, sujeitos àquele “papelão”.

A juíza da causa fez alusão a outras falhas na acusação feita pela Polícia, “… não foram reunidos elementos de prova suficientes, para que os quatro réus, aqui, presentes e julgados, se constituíssem ou se enquadrassem no conceito de aglomerado. Como já foi aqui dito pela digna magistrada do Ministério Público, verificamos que o Decreto 212/20 menciona a questão do aglomerado e, uma vez que o sr. declarante falou em 40/50 pessoas, verificamos apenas quatro réus, questionando-se, aqui, onde estarão os demais elementos, uma vez que quatro não corresponde nem à metade dos 50 que, em audiência de julgamento, disseram existirem em aglomeração. Daí que este tribunal não ficou convencido que os réus cometeram os crimes de que vieram acusados, ao que, não havendo convencimento por falta de reunião de elemento de prova, é chamado o princípio “in dúbio pro réu”, que significa que, em caso de dúvida, decide-se a favor do réu”.

Ademais, os polícias, declarantes a favor da Corporação, disseram que não viram os réus a beberem, embora pudessem sentir o bafo a álcool, e que sequer viram o membro do SIC a manipular a pistola contra os seus captores, como reza a acusação e que, também, não participaram na redacção da mesma acusação.

“Tem de haver ponderação nos nossos actos”

Diante destas razões, não se cala a pergunta: “que credibilidade terá a Polícia, quando se chega à conclusão que formula uma acusação que vai dar em Tribunal e, afinal, foi concebida e eivada de má-fé, por não se tratar da verdade?” Aguardamos a resposta.

Entrementes, remetemos a uma passagem do Ministro do Interior, Eugénio Laborinho, onde apela a melhor concepção da instrução processual, “…gostaria que, nos próximos tempos e nos próximos momentos, algumas deficiências comuns fossem, paulatinamente, ultrapassadas, tais como, as relacionadas com a qualidade da instrução preparatória e o respeito pelos direitos fundamentais, mormente, pelos direitos humanos; questões que não abonam a nosso favor, tão pouco em prol da nossa imagem. Por essa razão, em tribunal, muitos processos são devolvidos e absolvidos criminosos ou supostos autores de crimes, por falta de alguma qualidade na instrução preparatória”.

Assim, muito abalada fica a imagem da Polícia, nesse julgamento em que o tribunal, numa injecção de oxigénio à justiça, absolve os réus.

Djoline de Almeida, a juíza, se recusa a terminar a sessão sem que um recado fosse dado à Polícia. “Eu não posso deixar de alertar, com urbanidade, é claro, os nossos agentes da Lei que, aqui, atitudes como essas, devemos evitar. Evitar em que sentido? Devemos trabalhar sim, não somente na vertente da prevenção, como, também, da punição, mas respeitando todos os actos que nos levem a que quando o processo chegue ao tribunal, chegue sem violações de actos ou com actos ilegais, como se verificou nesse momento. Na verdade, o que é que aconteceu aqui? O que se pretende evitar com a questão da aglomeração, se nós não tivermos algum cuidado, acabamos por expor as pessoas ao risco, ao colocarmos, numa viatura, um número de pessoas superior à lotação ou, mesmo que não seja superior à lotação, atendendo ao estado da pandemia que vivemos, já estamos a pôr às pessoas expostas ao risco; o tempo de permanência na Esquadra, já estamos a expor as pessoas ao risco; o passar ou sair da Esquadra para ir ao tribunal num aglomerado, também de pessoas, expõe à pessoa ao risco; o tempo de espera para ser julgado, por causa da quantidade de processos, que estão a ser trazidos ao tribunal, também expõe à pandemia a que estamos submetidos. O que eu pretendo, no âmbito da urbanidade? Que no momento da nossa actuação haja ponderação nos nossos actos. Está bem, senhores agentes? Tem de haver alguma ponderação, pois, ninguém gostaria de estar a passar e, de repente, estar a ser levado, sem ser ouvido e ser colocado diante de um Tribunal sem saber porquê está a ser julgado. Está bem? Gostaria de deixar este alerta, sem deixar de vos incentivar a continuar a trabalhar, porque se reconhece que é um trabalho árduo, mas tem que ser feito sem desrespeitarmos aqueles que são os actos necessários para garantirmos, até mesmo, um processo e um julgamento justo.. E nós não podíamos deixar de dizer que a Polícia podia, muito bem, passar sem se submeter a isso.

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