Justiça poética: MAGISTRADOS NA RUA MOSTRAM UM COMBATE À CORRUPÇÃO MAQUIADO POR JLO E SEUS PARES

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Custou crer, mas na hora marcada e disposição visível, com rostos cobertos em prevenção à covid 19, os Magistrados do Ministério Público, tal como alguns judiciais,  com sensivelmente 200 presenças, protestaram, no sábado, 31 de Julho, contra “péssimas condições laborais”, “redução e retirada dos seus direitos adquiridos”, e a favor da “dignificação da magistratura”.

 Liberato Furtado

Com o sol escondido, Polícia à paisana (baixa visibilidade), a gosto e desgosto, trânsito interrompido, o dia despertou diferente defronte ao Palácio Dona Ana Joaquina/Tribunal da Comarca de Luanda. Os cartazes no protesto tiveram dizeres como “justiça mendiga e magistrado em kupapata”, “corruptos em carros de luxo”, entre outros.

“Nós entendemos que o sistema judiciário angolano é base fundamental para a garantia do Estado Democrático e de Direito para a garantia da dignidade da pessoa humana , dos direitos e deveres e garantias fundamentais do cidadão e, consequentemente, na estabilidade social de Angola, quer do ponto de vista social, quer económico ou cultural. Então, entendemos que o Executivo deve reaver a forma como encara esse sector, dando as medidas que exigimos. Aliás, estão legalmente consagradas e, infelizmente, não estão a ser executadas”

Um dia antes, o Sindicato promoveu uma conferência com a imprensa que durou sensivelmente três horas e, pela primeira vez, ouviu-se o clamor dos magistrados impregnado de suor e sem lenços, ao menos como paliativo.

Os magistrados angolanos dizem-se firmes e unidos para lutarem pelos seus direitos legítimos e adquiridos e, na massa de protesto que abrangeu o país, segundo enfatiza José Buanga, presidente do Sindicato Nacional dos Magistrados do Ministério Público, não está apenas em causa o estatuto sócioprofissional do magistrado.

“A nossa motivação é pela melhoria do sistema de justiça, é pela melhoria dos direitos e garantias fundamentais do cidadão por via dos tribunais e por via dos processos judiciais. Achamos, como tal, que só dando condições de trabalho a quem efectivamente torna isso exequível é que teremos um país com melhor justiça e, consequentemente, um país em que a dignidade da pessoa humana seja efectivamente protegida por meio dos mecanismos legais que o país, enquanto República, dispõe”, frisa o responsável.

Ainda na conferência que precedeu o protesto público, realizada na sexta-feira, 30 de Julho, também se decantou que o movimento nacional cobra o fortalecimento da carreira dos magistrados, além de uma política remuneratória mais justa. Em sentido único e convergente, o juiz Adalberto Gonçalves, presidente da Associação dos Juízes de Angola (AJA) marcou presença. “… nós estamos aqui para despertar as pessoas, para despertar as consciências, para despertar quem tem o poder para decidir. Nós não começamos hoje, a Associação dos Juízes tem documentos escritos endereçados a várias instituições, desde o Presidente da República, sobre a situação”. Da plateia constituída por procuradores e juízes, ouviu-se “exactamente, é verdade!” 

Adalberto Gonçalves continuou a sua intervenção e destacou que  têm um Memorando com mais de 30 páginas, endereçado ao Presidente da República. “Vá ver o discurso do Sr. Presidente da República, na cerimónia de tomada de posse em 2017, dizia assim: «vamos atribuir a devida dignidade ao poder judicial, cuja importância para o processo de democratização é indiscutível». Estamos em 2021, viemos reivindicar as nossas condições. Hoje os tribunais não estão lentos, estão excessivamente lentos. O trabalho está lento, quase não há pessoal para fazer o trabalho”.

Os magistrados se negam a deixar de receber tudo o que estatuto sócioprofissional estabelece, querem condições condignas de trabalho e que fique bem definido que querem ainda uma política remuneratória racional. Com isso, advertem que não se vão curvar ao tipo de conduta que não os dignifique, segundo José Buanga, presidente do Sindicato Nacional dos Magistrados do Ministério Público. “A não concretização do nosso desiderato levará à realização de outras acções atinentes a continuar a pressionar o Executivo, no sentido de mudar as políticas que tem em relação ao sector”, referiu.

“Nós entendemos que o sistema judiciário angolano é base fundamental para a garantia do Estado Democrático e de Direito para a garantia da dignidade da pessoa humana , dos direitos e deveres e garantias fundamentais do cidadão e, consequentemente, na estabilidade social de Angola, quer do ponto de vista social, quer económico ou cultural. Então, entendemos que o Executivo deve reaver a forma como encara esse sector, dando as medidas que exigimos. Aliás, estão legalmente consagradas e, infelizmente, não estão a ser executadas”, sublinhou.

O presidente da Associação dos Juízes de Angola, o juiz Adalberto Gonçalves, de modo incisivo ou pedagógico, com o fim, quiçá, de melhor capitalizar compreensões à causa,  avulta que a pauta do protesto é mais extensa que o ponto do passaporte diplomático.

“Quando nos propusemos a essa luta, nunca colocamos à frente as regalias sociais dos magistrados. Não! Nós não trouxemos aqui a questão do passaporte. Talvez devemos colocá-la como a gota d’água, que transbordou do copo cheio de água fétida que dedicam aos magistrados dos tribunais de primeira instância e acabou com toda a sua dignidade. Mas a nossa motivação ou preocupação não é, de longe, o passaporte diplomático, não viemos, hoje, aqui, lutar pelo passaporte diplomático. Sim senhor, é um direito consagrado no nosso Estatuto, desde 1994 e, se for verificar no Preâmbulo do Estatuto Remuneratório, esses documentos foram aprovados por falta de dignidade dos magistrados, naquela altura, e era necessário equiparar aos outros titulares do poder de soberania, daí terem sido aprovados. Agora, lhe digo: vá consultar a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas e verá quem tem direito à passaporte diplomático. Por que o retirar aos magistrados judiciais e do Ministério Público e não aos outros?! Tá ver? Em todo mundo se diz que a justiça é lenta, em Angola dizê-lo é um elogio. Vá pesquisar, vá trabalhar, vá fazer um levantamento dos tribunais do país e não precisa andar muito, basta ir à Viana com fossas a rebentar no meio do tribunal…”.

Governador de Cabinda tenta dissuadir os magistrados

De Cabinda também recebemos uma mensagem dos magistrados, onde se podia ler:

“Devo informar que, nós magistrados da Província Judicial de Cabinda, fomos surpreendidos com o convite do governador, para um encontro urgente que teria lugar no Palácio do Governo local. O objectivo era convencer-nos a fazermos diferente em Cabinda, ou seja, a não aderirmos ao protesto programado a nível nacional.

 Aceitamos o convite, mas o encontro teve lugar hoje, pelas 10h00,  não no Palácio e sim numa das nossas salas de audiência e, obviamente, demos a conhecer a nossa firme posição e intenção de participar do protesto, visto que a causa é de todos nós”.

Fez pauta na ocasião do protesto o facto de os órgãos públicos não se fazerem presentes e tão pouco abordarem a matéria, com excepção da Rádio Luanda. Na conferência com a imprensa e em outros espaços, algumas pessoas se manifestaram solidárias e outras não, mas fez senso que se cobrava reciprocidade vinda dos magistrados quando outros interesses são reclamados por outras sensibilidades.

Nessa corrente, Laura Macedo, activista social, deu voz a esse desiderato na conferência, onde esteve presente, tal como no Palácio Dona Ana Joaquina. O princípio/direito fundamental à solidariedade constituiu-se, actualmente, como um inovador instrumento normativo de integração e transformação do ordenamento jurídico, segundo os seus percursores. Desse modo, a sua aplicação nas relações sociais traz no âmago a concrectização da dignidade humana e fortalece o mosaico jurídico de um país.

Longe de se verificar na proporção satisfatória nas nossas interacções humanas diárias, ainda assim, acredita-se e vale enfatizar que juntos somos mais fortes, tendo o princípio/direito fundamental à solidariedade como objectivo primordial de cooperação e integração entre os homens. Enfim, se acredita que é possível fazermos muito mais em prol e, por meio dessa mesma solidariedade, pode-se partir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todos.

Daí que indagamos José Buanga  sobre a visão de outros movimentos reivindicativos que  solidarizaram-se com a causa, mas, de igual modo, reclamam, dizendo que os magistrados não têm tido essa mesma sensibilidade. Algo surpreendido, o presidente do Sindicato Nacional dos Magistrados do Ministério Público respondeu-nos, alegando que é um falso problema. “Dentro daquelas possibilidades que os magistrados têm, obviamente aderem às outras causas. As pessoas devem entender que ao magistrado lhe é imposto um rol de impedimentos que não lhe permite aderir a certos eventos, daí que nem sempre se vê os procuradores em outras actividades em que outros reivindicam os seus direitos… mas nós somos sensíveis às outras causas, aliás, enquanto humanos, não é possível nos dissociarmos desses fenómenos.

“Chega de pagar para trabalhar”

Para se ter nem que vesga noção, um dos cartazes, no protesto, dizia “chega de pagar para trabalhar”. Mas quando perguntamos à direcção sindical do Ministério Público se as condições colocadas à disposição favorecem a corrupção e enfraquecem o poder de decisão, se fez silêncio que se manteve na pergunta a seguir: “A PGR, a exemplo, tem uma dependência hierárquica. Essas condições colocam em causa a independência judicial?”.

O presidente da Associação dos Juízes de Angola, Adalberto Gonçalves, explica, porém, o que se quer dizer com o cartaz em questão: “hoje, a maior parte dos tribunais e também da Procuradoria funciona porque o magistrado tira do seu bolso para comprar papel, tinteiro… e quando aparentemente não tira, o que ele faz? Leva o trabalho para casa, faz a impressão dos documentos no seu computador/impressora de casa, gasta o seu tinteiro. O dia que ele deixar de fazer isso, fica à espera que uma resma de papel lhe seja entregue e chegue para o mês todo na impressão de documentos e outras necessidades. Quando não  chegar e o magistrado não gastar do seu bolso, os constituintes, advogados, enfim, a população vai ficar à espera com todas as consequências que daí podem advir. Então, só não esperam mais, porque o magistrado pega em tudo, leva e faz o trabalho em sua casa. Vai ao tribunal quando tem audiência por realizar, porque não há condições que permitam lá permanecer na maior parte das vezes”.

A vida de um PGR no Alto Zambeze

Presente no protesto em Luanda, o magistrado do Ministério Público, Josefo Kilumbo, colocado no Alto Zambeze, sede de Cazombo, Moxico, dispôs-se a dar-nos uma entrevista…

O Crime: Como é ser procurador junto ao Ministério Público nesta região?

Josefo Kilumbo: Descrever todas as dificuldades num só dia não é possível, mas resumidamente, importa dizer que não é fácil! Para ter uma ideia, o Alto Zambeze dista a mais de 800 km da capital da província do Moxico, que é Luena. E como deve imaginar, o acesso para o Cazombo não é dos melhores, nunca teve estrada. Pelo menos do município do Luau ao Alto Zambeze, não tem estrada. Embora me tenha sido dada uma viatura, as dificuldades são muitas. Quando chove, não se consegue chegar ao município. Não se pode sair, porque, como sabe, aquilo é chana e fica tudo inundado. 

Não é possível, portanto, para o magistrado, polícia ou população, a deslocação em busca de recursos, alimentos para a sobrevivência sempre que se impõe. Na sede, não há instalações da PGR, funcionamos num cubículo no Comando Municipal da Polícia, espaço este que serve para o magistrado e também para serem ouvidos os arguidos.

A distância para a sede da província, onde tem o tribunal, faz com que o magistrado aí colocado (no Alto Zambeze) encontre um mar de dificuldades que obstaculizam a busca de soluções aos problemas daquela população. Como exemplo,  o problema da prestação de alimentos, herança e outros de fácil trato. 

O Crime: Se junta a esse Protesto aqui em Luanda com que objectivo?

Josefo Kilumbo: O objectivo é poder mostrar a todos e aqui na capital do país o quão difícil é desempenhar a tarefa de magistrado nos lugares longínquos do país. Muitas são as vezes que o cidadão questiona por que determinado processo demora a ser decidido, mas nem lhe ocorre as vicissitudes a que passamos, para levar a bom porto a nossa missão.

O Crime: Diante das dificuldades e carências impostas no desenrolar das suas tarefas, pode dizer se consegue ser o fiscalizador da legalidade onde se encontra? 

Josefo Kilumbo: Nos limites das nossas possibilidades, vamos fazendo o possível. Por exemplo, não temos energia eléctrica e o magistrado tirou do seu bolso para comprar um gerador e, consequentemente, o combustível que a necessidade impõe. Não temos tido papel, tinteiro e outros materiais e é do dinheiro do magistrado que se faz as compras para suprir à demanda. Ainda assim, temos procurado exercer a fiscalização da legalidade dentro dos limites impostos e transpostos. Em suma, poderíamos fazer muito mais, porém, vamos fazendo tudo para não comprometer e para que o barco não pare. 

Corrupção acena aos magistrados VS separação de poderes abalada

A questão é que determinadas reivindicações não podem, muito menos devem servir de artefactos poéticos em que o importante seja sacar forças do nada. Quando na magistratura se leva a cabo esse tipo de reivindicação justificada, se deve, com certeza, importar o manifesto na sua forma e meios, a partir dos quais, notar que estratégias e até onde se está disposto a chegar para lutar por um direito legítimo. Esse pressuposto instigante e de vultosa importância serve tanto para uns como para outros. Ou seja, tanto para o empregador como aos magistrados.

Ora, desse ponto, qualquer das partes deverá colocar as barbas de molho, porque o diabo pisca o olho convidando ao desvio de conduta onde está subjacente o “vale tudo” com toda as consequências à segurança jurídica.

Ora, desse ponto, qualquer das partes deverá colocar as barbas de molho, porque o diabo pisca o olho convidando ao desvio de conduta onde está subjacente o “vale tudo” com toda as consequências à segurança jurídica.

As questões levantadas na reivindicação dos magistrados, tal como uma política remuneratória que recomponha as perdas inflacionárias, um sistema de saúde, segurança e dignidade adequada, colocou sobre a mesa uma espécie de arte de magia que recorda toda uma transformação e decadência de valores que colocou este país sem crédito de moral.

O que queremos dizer é que, depois de atingido o parâmetro da reivindicação de rua, o poder judiciário fica entrelaçado às mazelas, onde cada juridicidade deve resplandecer justiça, aquela fica manietada num mar de dificuldades para cumprir a sua missão constitucional e sujeita-se aos limites do dito que lembra que todo homem tem um preço.

Assim, a intransigente postura adoptada pelo empregador, na “(m)ama do poder”, é de especial relevância e a sensatez nesse momento se convida, para que se possa considerar outras vias mais eficazes e virtuosas de se chegar a uma plataforma de entendimento aceitável.

É verdade que em um país em que foi reinando e faz cultura uma certa docilidade,  resignação, submissão e até interferência arbitrária, a impotência e o conformismo se impôs como regra. Logo, a manifestação, tal qual foi essa, passa como antipática, antipatriótica e até se apoda de inspiração da oposição política. 

O que convirá, entretanto, à orbe jurídica é que exista uma separação entre os mundos do ser e do dever ser. Impõe-se, então, o esforço dos actores do Direito e corpo social,  para serpentearem na direcção dos altos valores que as normas devem espelhar. Os problemas que emergem, portanto, sejam identificados como um desafio “aos operadores do direito”, para julgarem as lides com imparcialidade.

Recorrendo-se a Aristóteles, dir-se-ia, por outro lado, que indignar-se e rebelar-se no grau exacto, no momento oportuno, com o propósito justo e do modo correcto, isso, certamente, não resulta tão simples. Para lográ-lo, o que realmente importa é, salvo melhor entendimento, desenhar estratégias ou meios adequados, honrados e inteligentes que não somente coincidam com os fins em busca, mas que também tenham um valor próprio ou um fim em si mesmo dignos, isto é, uma estratégia (ou meio) que valha a pena realizá-la por si mesma.

Nesse baixar da guarda do silêncio, talvez esteja a oportunidade histórica de se esquecer os habituais jogos políticos. Que  se aproveite esse movimento para tratar de restabelecer a confiança, a virtude e a honradez pública de um Estado que parece impotente e ineficaz, que continua a distribuir de forma tão grosseiramente desigual recursos, oportunidades e riqueza de forma tão incivil, com escassa liberdade, assistência sanitária e segurança pública.

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